Pesca e colchões (Improviso e sobrevivência)

Foi assim: Era uma vez duas gêmeas más. Elas eram egoístas, histéricas, sem nenhum senso de humor e um pouco ninfomaníacas. As gêmeas davam pra meio mundo. Juntas e separadas, era um escândalo em Foz do Iguaçu! E então, surgiram dois forasteiros, que vinham lá dos Pampas, que eram muito machões e não tiveram medo de amar estas mulheres sedutoramente más!

Traziam consigo suas economias para iniciar novas empreitadas no Paraná, deixando pra trás um passado de chima (rrão), cachaça e putaria e a história – que é outra história – de como foi que acumularam fortuna. Chegaram a Foz dizendo que foi Loteria que, pingas depois, virava uma aposta e, pingas depois, viravam especulações sem sentido, olhares sinistros, trocados entre os dois e, deliciosas fofocas, uma mais quente que a outra, enchendo cabeças e boquinhas sussurrantes das senhoras católicas com tempo de sobra. Uma beleza!

Empreenderam seu dinheiro em dois comércios, um, uma casa de produtos para pescaria e o outro, uma loja de Camas e Colchões. Conheceram as gêmeas, apaixonaram-se e se casaram.

Se eu escrevesse ficção, a este ponto, elas seriam salvas pelo amor, deixariam de ser egoístas e mal-humoradas, ficariam um pouco mornas e controlariam sua ninfomania (há terapia ótimas para estes casos, hoje em dia!) e eles teriam filhotinhos de bochechas rosadas. Só que não… Na vida real, as coisas e pessoas mudam muito pouco e as gêmeas lhes tiraram o sossego, a energia e o dinheiro e os dois, cornos e falidos, juntaram seus chifres e produtos e montaram um negocinho, uma portinha besta, botando acima da porta uma faixa improvisada, onde se lia “Pesca & Colchões”. Dentro da lojinha, produtos para pesca, colchões e dois cornos de passado mal contado.

É verdade que não chega a ser lá um final feliz, até porque, fora da ficção, o final de nada costuma ser muito feliz, mas eles improvisaram e sobreviveram. Chima, pinga e Zona, remédios para todos os males!

Lembra do “Bar do Cidão”? O Cidão era um Nego-Véio, sobrevivente da Velha Guarda do Samba de Sampa, tinha lá, uma portinha na Vila Madalena, daquelas que “você não dá nada” e, ao entrar, você podia cruzar com figuras incríveis da Cena do Samba Paulistano e tudo podia acontecer… No cardápio do bar, tinha um papelzinho grampeado com parte dos pratos e o Cidão me explicou que “é que não coube tudo, então, a gente pregou isso aí” e era um charme só! Samba finíssimo rolando, cadeiras de menos, e papeizinhos grampeados nos cardápios. O Cidão (que hoje, samba ao lado do Eterno) não teve “aquela estrutura”, nem “aquela oportunidade”, meteu sua portinha ali no “Epicentro da Confa Paulistana” e chamou a Velha Guarda pra fazer um som. Sem espaço, nem no bar, nem no cardápio, o Cidão improvisou e sobreviveu.

Preciso contar uma outra história, pra contar uma quarta história… Então, esta será bem resumida:

Estamos em 2015 e a Síria tá na merda… (é… tá na merda… que “tipo de merda” varia muito a opinião de pessoa pra pessoa…). Os sírios estão fugindo pra onde der pra fugir, do jeito que der pra fugir e morrendo feito borboletas pelo caminho, em silêncio. Talvez, a perspectiva de morte, tentando fugir, seja a única esperança, diante da certeza de morte, tentando ficar e, talvez, nem todos eles se importem com isso, talvez, se atirar num caminho sem volta, com chances mínimas de sobrevivência seja, nesse contexto, alguma sensação de poder sobre a própria vida, que é a primeira coisa que se perde quando tudo começa a se perder.

Entre outros meio semi-suicidas, há embarcações que se atiram mar adentro sem nenhuma segurança de que possa chegar do outro lado, seja lá qual for e, assim, corpos aparecem nas belíssimas praias européias. Na semana passada foi a vez de Alan Kurdi, de 3 anos parar o mundo pra ser visto, sem vida, deitado de bruços, numa bela praia da Grécia. E todas as pessoas que estão em 2015 o reveem, lendo este texto. O corpinho do Alan chegou aqui no Brasil, na nossa praia, na nossa ilusão de viver num País que não tem Guerra, foi arrastado pelo mar da Grécia pra dentro da casa de cada um de nós… E agora?

Fui procurar “meme” na Wikipédia (pra contar a tal da história) e encontro:

“A chave de todo ser humano é seu pensamento. Resistente e desafiante aos olhares, tem oculto um estandarte que obedece, que é a ideia ante a qual todos seus fatos são interpretados. O ser humano pode somente ser reformado mostrando-lhe uma ideia nova que supere a antiga e traga comandos próprios.”
Ralph Waldo Emerson

“Tem oculto um estandarte que obedece” dá outra história, então vou ficar com “O ser humano pode somente ser reformado mostrando-lhe uma ideia nova que supere a antiga e traga comandos próprios.”. Hoje eu recebi um Meme (taí a história!) feito de um desenho lindo, singelo, naif, de uma Yemanjá levando o menino mar adentro, deixando o corpinho para trás e dizendo a ele “Para onde vamos, só há paz, meu anjo” e foi aí que me lembrei da loja de Foz do Iguaçu, do Bar do Cidão e nessa nossa vontade louca de sobreviver a qualquer coisa, que foi capaz de invocar um Orixá para levar para longe essa dor, esse desconforto, uma “idéia nova que supera a antiga”, uma esperança, um final feliz para o corpinho que chegou aqui.

Não, nós não somos 204 milhões de canalhas, de corruptos, de idiotas, de filhosdaputa em geral, é o contrário! Estes canalhas são minoria (só fazem muito barulho!) Somos 204 milhões de pessoas que se reconstroem, que se reinventam, que improvisam e sobrevivem no final. Somos milhões de Cidões, milhões de vendedores do que pudermos vender, milhões de  Yemanjás buscando a paz mar adentro, ainda que esse sentimento seja traduzido num incômodo Meme viral.