O treinador de Baleias – Uma dinâmica amorosa

As baleias são mamíferos marinhos enormes. Seu corpo gigante tem muita, muita gordura e a quantidade de comida que uma baleia precisa para se alimentar, vai muito além de um peixinho.

Eu não entendo nada da “bio-mecânica de animais marinhos”, mas, imagino que um salto de um peixe gigante (que não tem pernas, claro!) seja algo para o qual ele necessite empreender um esforço e energia do tamanho do Mundo.

Lá vem o treinador, do alto da escada, com seu peixinho, lá vem a baleia, do fundo de sua apertada piscina-cativeiro, saltar para pegar o peixinho, ganhar um cafuné do treinador e a Saudação da Geral!.

Quando o treinador oferece à baleia um peixinho, ele dá a ela duas informações: 1) Eu sei do que você precisa e 2) Eu tenho o que você precisa. A baleia, quando salta, não é para fisgar o peixe, e sim para fisgar a idéia, a possibilidade, o sonho de encontro com alguém que vai dar a ela o que ela precisa… Volta frustrada para o fundo da piscina e, antes mesmo de perceber o quanto aquele peixinho não saciou sua fome, não resiste ao brilho fosco, do peixinho que balança, lá no alto e salta, novamente…

Podemos, então, concluir que uma balia para empreender todo este esforço por quase nada deve estar, sim, faminta! Tanto tempo fora do mar que, talvez, ela sequer se lembre o que é estar, de fato, saciada, alimentada e livre.

Algumas histórias “de amor” (favor, considerar as aspas!) têm uma dinâmica muito próxima desta. A menina, a baleia, o treinador, o “Príncipe da vez” e os peixinhos são as migalhas de esperança que as fazem saltar de sua profundidade, para a ilusão – já comprovada – de encontrar o que precisa, o que a alimenta…

De acordo com ela, o seu “provedor” tem o que ela necessita, ela enxerga o balde cheio de peixes ao seu lado mas, o fato é que ela salta ao primeiro sinal de peixinho e o treinador pode ir embora com seu balde, brincar com outras baleias. Ela, no fundo de sua piscina, faminta e confusa, sente uma dupla culpa: querer o balde e aceitar o peixinho.

A este ponto, algumas meninas trocam de treinador, mas continuam na mesmíssima dinâmica, por já estarem, há muito tempo, longe do mar e da real sensação de ser alimentada, com calma, com fartura, a seu tempo. Ás vezes ficam anos assim…

Imagine o que aconteceria se a baleia, simplesmente, não saltasse? O treinador teria que aumentar o tamanho e quantidade dos peixes! Talvez ele atirasse alguns na piscina e ela os comeria sem que ele visse e se envaidecesse disso, indo embora com seu balde… Talvez ele atirasse todo o balde para dentro da piscina e, à essa altura, a baleia já estaria bem saciada e, não mais saltando, fosse devolvida ao mar…

Os “peixinhos” que alguns meninos atiram para as meninas, vêm em forma de elogio, de carinho, presentinho (quase sempre meio “opaco”, meio repetido, “virtual”) e, se você não saltar, vêm peixes maiores, um telefonema, chegam flores, ele fala de você pras pessoas e “curte tudo que você posta” (que preguiça pensar que isso é um “peixe médio”). Se você não aceitar os peixes médios, duas coisas podem acontecer: 1) Você vai conhecer um moço novo, melhor e mais gentil que é, exatamente aquele, só que rejeitado e se dar bem ou 2 ) Ele vai desaparecer com seu balde véio, vai tarde, obrigada, de nada, disponha.

Receber e Responder são duas coisas absolutamente distintas e você pode (deve!) receber, aceitar, alimentar-se dos peixinhos, você só não precisa saltar! Ele te diz “Você é a mulher mais deliciosa que eu conheci na vida!” (lá no “Watsapp”, um peixe médio, pra ver se você salta). Receba, aceite, acredite, sorria, alimente-se dele e não faça absolutamente nada “com” ou “por” ele. Pense que, assim com a barriguinha mais cheia, o próximo “Príncipe encantado” já vai ter que chegar com um Atum inteiro ou você nem irá notar sua chegada e essa “rede” deixará os caras do baldinho do lado de fora da sua piscina!

Ame você primeiro, sereia! Nós somos muito mais que baleias e, infinitamente, mais que sereias! Sabe por quê? Sabe, exatamente, aquilo que as sereias não têm? Pois é… nós temos! Só “pelo que não têm as sereias”, os homens são capazes de enfrentar Monstros Marinhos! E, acima disso, um ventre que pare, seios que alimentam, entre eles, um coração de leão, de sobrevivente, acima disso, a garganta, a boca que berra “Não!”, olhos cheios de amor e, ainda acima, bem acima uma máquina maravilhosa que Deus Deu a homens e mulheres, para que todo o resto funcione bem.

Aproveite todos os recursos e, pelo sim pelo não, tenha sempre uma amiga durona pra ligar quando “a coceira no dedo” estiver insuportável e, se possível, um bom amigo (pode vir com corpo ou, somente, pilhas) para quando a coceira não for, bem, no dedo.

Pesca e colchões (Improviso e sobrevivência)

Foi assim: Era uma vez duas gêmeas más. Elas eram egoístas, histéricas, sem nenhum senso de humor e um pouco ninfomaníacas. As gêmeas davam pra meio mundo. Juntas e separadas, era um escândalo em Foz do Iguaçu! E então, surgiram dois forasteiros, que vinham lá dos Pampas, que eram muito machões e não tiveram medo de amar estas mulheres sedutoramente más!

Traziam consigo suas economias para iniciar novas empreitadas no Paraná, deixando pra trás um passado de chima (rrão), cachaça e putaria e a história – que é outra história – de como foi que acumularam fortuna. Chegaram a Foz dizendo que foi Loteria que, pingas depois, virava uma aposta e, pingas depois, viravam especulações sem sentido, olhares sinistros, trocados entre os dois e, deliciosas fofocas, uma mais quente que a outra, enchendo cabeças e boquinhas sussurrantes das senhoras católicas com tempo de sobra. Uma beleza!

Empreenderam seu dinheiro em dois comércios, um, uma casa de produtos para pescaria e o outro, uma loja de Camas e Colchões. Conheceram as gêmeas, apaixonaram-se e se casaram.

Se eu escrevesse ficção, a este ponto, elas seriam salvas pelo amor, deixariam de ser egoístas e mal-humoradas, ficariam um pouco mornas e controlariam sua ninfomania (há terapia ótimas para estes casos, hoje em dia!) e eles teriam filhotinhos de bochechas rosadas. Só que não… Na vida real, as coisas e pessoas mudam muito pouco e as gêmeas lhes tiraram o sossego, a energia e o dinheiro e os dois, cornos e falidos, juntaram seus chifres e produtos e montaram um negocinho, uma portinha besta, botando acima da porta uma faixa improvisada, onde se lia “Pesca & Colchões”. Dentro da lojinha, produtos para pesca, colchões e dois cornos de passado mal contado.

É verdade que não chega a ser lá um final feliz, até porque, fora da ficção, o final de nada costuma ser muito feliz, mas eles improvisaram e sobreviveram. Chima, pinga e Zona, remédios para todos os males!

Lembra do “Bar do Cidão”? O Cidão era um Nego-Véio, sobrevivente da Velha Guarda do Samba de Sampa, tinha lá, uma portinha na Vila Madalena, daquelas que “você não dá nada” e, ao entrar, você podia cruzar com figuras incríveis da Cena do Samba Paulistano e tudo podia acontecer… No cardápio do bar, tinha um papelzinho grampeado com parte dos pratos e o Cidão me explicou que “é que não coube tudo, então, a gente pregou isso aí” e era um charme só! Samba finíssimo rolando, cadeiras de menos, e papeizinhos grampeados nos cardápios. O Cidão (que hoje, samba ao lado do Eterno) não teve “aquela estrutura”, nem “aquela oportunidade”, meteu sua portinha ali no “Epicentro da Confa Paulistana” e chamou a Velha Guarda pra fazer um som. Sem espaço, nem no bar, nem no cardápio, o Cidão improvisou e sobreviveu.

Preciso contar uma outra história, pra contar uma quarta história… Então, esta será bem resumida:

Estamos em 2015 e a Síria tá na merda… (é… tá na merda… que “tipo de merda” varia muito a opinião de pessoa pra pessoa…). Os sírios estão fugindo pra onde der pra fugir, do jeito que der pra fugir e morrendo feito borboletas pelo caminho, em silêncio. Talvez, a perspectiva de morte, tentando fugir, seja a única esperança, diante da certeza de morte, tentando ficar e, talvez, nem todos eles se importem com isso, talvez, se atirar num caminho sem volta, com chances mínimas de sobrevivência seja, nesse contexto, alguma sensação de poder sobre a própria vida, que é a primeira coisa que se perde quando tudo começa a se perder.

Entre outros meio semi-suicidas, há embarcações que se atiram mar adentro sem nenhuma segurança de que possa chegar do outro lado, seja lá qual for e, assim, corpos aparecem nas belíssimas praias européias. Na semana passada foi a vez de Alan Kurdi, de 3 anos parar o mundo pra ser visto, sem vida, deitado de bruços, numa bela praia da Grécia. E todas as pessoas que estão em 2015 o reveem, lendo este texto. O corpinho do Alan chegou aqui no Brasil, na nossa praia, na nossa ilusão de viver num País que não tem Guerra, foi arrastado pelo mar da Grécia pra dentro da casa de cada um de nós… E agora?

Fui procurar “meme” na Wikipédia (pra contar a tal da história) e encontro:

“A chave de todo ser humano é seu pensamento. Resistente e desafiante aos olhares, tem oculto um estandarte que obedece, que é a ideia ante a qual todos seus fatos são interpretados. O ser humano pode somente ser reformado mostrando-lhe uma ideia nova que supere a antiga e traga comandos próprios.”
Ralph Waldo Emerson

“Tem oculto um estandarte que obedece” dá outra história, então vou ficar com “O ser humano pode somente ser reformado mostrando-lhe uma ideia nova que supere a antiga e traga comandos próprios.”. Hoje eu recebi um Meme (taí a história!) feito de um desenho lindo, singelo, naif, de uma Yemanjá levando o menino mar adentro, deixando o corpinho para trás e dizendo a ele “Para onde vamos, só há paz, meu anjo” e foi aí que me lembrei da loja de Foz do Iguaçu, do Bar do Cidão e nessa nossa vontade louca de sobreviver a qualquer coisa, que foi capaz de invocar um Orixá para levar para longe essa dor, esse desconforto, uma “idéia nova que supera a antiga”, uma esperança, um final feliz para o corpinho que chegou aqui.

Não, nós não somos 204 milhões de canalhas, de corruptos, de idiotas, de filhosdaputa em geral, é o contrário! Estes canalhas são minoria (só fazem muito barulho!) Somos 204 milhões de pessoas que se reconstroem, que se reinventam, que improvisam e sobrevivem no final. Somos milhões de Cidões, milhões de vendedores do que pudermos vender, milhões de  Yemanjás buscando a paz mar adentro, ainda que esse sentimento seja traduzido num incômodo Meme viral.

 

All my troubles seemed so far away…

Envelhecer tem, sim, lá suas vantagens. Por exemplo: Saber a diferença entre drama e tragédia e saber o que fazer com seu cabelo. Dois problemas distintos, de berço, sanados! De desvantagens, todas as que já sabemos e uma que os “meus velhos” esqueceram de comentar: Os outros se vão e você vai ficando…

Somos pouca coisa a mais do que os outros sabem de nós, uma outra parte, é o que construímos em nós, na presença destes outros. A presença dos seus em sua vida é a garantia que você tem de não se esquecer quem você é. Se você fingir ser outra pessoa ou, simplesmente, esquecer-se, tem um cara lá que vai te olhar um olhar “Te conheço!” que te faz encontrar, imediatamente, o caminho que leva de volta a você.

As pessoas que você ama, suas testemunhas, nesse caminho lado a lado, vão criando raízes que se entrelaçam nas suas e, caso você se perca, tem como voltar, somente olhando pro lado.

Tem uma parte da sua história que é tão entrelaçada na raiz ao lado, que você precisa do outro pra te apontar o que é você e o que é ele. Os nós destas raízes vizinhas fortalecem as suas até que um dia, um ruído seco corta aquele negócio lá longe, lá na base, e você percebe que tem um ramo a menos te prendendo à vida.

Um dia, o seu telefone toca e alguém próximo de você, alguém que não te liga. – Aliás, atualmente, ninguém liga pra ninguém… Em quase que dois significados. – Alguém que, não necessariamente liga pra você, te liga, falando com uma voz de quem, realmente, liga muito pra você “Onde você está? Você já está sabendo?” e, sim, você, do outro lado, já está sabendo.

Nas primeiras duas ou três vezes, dá aquela “tonteira”, um mal-estar, uma sensação de que algo ruim pode ter acontecido. Chega um momento em que não, você não tem sensação alguma, você sabe, exatamente, o que aconteceu e prende o ar para ouvir “Quem foi?”.

Dia desses, o Thomas que tava por aí, foi embora, não tá mais… Ele andava bem doente, sofrendo muito nos últimos meses e minha primeira sensação, ao ouvir seu nome, foi de alívio, depois, revendo minhas memórias, um pouco de riso, um pouco de culpa (podia ter feito sei lá o que mais…), aquela saudade doída, revirando lá dentro, como um redemoinho, brotando, discreto, lá no fundo da alma, uma onda gigante de lágrimas, o peso do “nunca mais” e um pouco mais de solidão. Uma testemunha a menos, uma raiz a menos e eu, sinto-me ficando um pouco mais frouxa no Mundo.

A luz, “aquela luz”, sabe? Interior? Quando a gente se apaixona, fica mais colorida, e todo mundo repara, sabe? Eu não acho que seja uma luz, acho que é como uma manta de luzes de muitos tamanhos, intensidades e cores diferentes. Quando alguém que você ama se afasta, apaga uma, depois outra, depois outra… A gente vai ficando na penumbra, até que algumas delas se reacendem, ou ainda, brotam novas luzinhas, mas, as dos outros, os que vão embora, estas não. Nunca mais.

O Thomas, certa vez, me disse: “Sabe… eu não tenho porra nenhuma do que as pessoas dizem que a gente precisa ter pra ser feliz… Eu não tenho carro, não tenho casa, não tenho dinheiro guardado, nunca botei uma gravata e não sinto a menor falta de nada disso!” e era, absolutamente, verdade. Ele viveu mais de 50 anos sem carro, nem gravata, cercado de montanhas de discos e livros e pessoas, de todas as cores e formas, rindo à toa, contando mil histórias e fazendo música.

E, olhando assim pro Thomas, tão vivo, vejo o outro lado da perda dos outros, que foi o privilégio de ter estado em sua presença! Estes são aqueles amigos que sabiam das coisas. De alguma maneira, sabiam o que todos dizemos saber, que a vida é urgente e preciosa, que é melhor deixar pra lá, que é mais gostoso com bom humor… Eles passam na vida da gente, às gargalhadas, e se vão, cedo, sem débitos.

Ele era “Beatlemaníaco” e eu, o extremo oposto… Em uma das cem vezes que ele me obrigou a “ouvir Beatles para mudar de idéia”, eu disse “Thomas! Desiste! Eu detesto essa porra!”, ele deu uma gargalhada, me deu um agarrão, falou “Você é uma figura! Eu adoro você” e não tirou o som. Nem reparei! Reparei mais no fato de ele me adorar, detestando a coisa que ele mais amava.

Era assim que o Thomas levava a vida, fazendo o que queria, dando gargalhadas e amando as pessoas. Do jeitinho que a gente sabe que deveria viver, até que um dia, fique de nós o som da nossa risada, das canções que foram trilha sonora das histórias que contamos juntos, o ruído dos sapatos caminhando ao lado e as profundas marcas no nosso caminho, de cada nozinho, cada raminho daquela raiz na qual se apoiou a sua, por tantos anos.

CAIRO 2015: A festa da Fefelech

Talvez, para um não paulista, partes desta história não façam muito sentido, mas vou tentar explicar… na USP (Universidade de São Paulo) tem a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a FFLCH, para os mais íntimos “Fefelech” e para muitas pessoas, tanto de dentro, como fora da FFLCH, isto significa, também um modo de vida.

Para os paulistas, moleza de explicar: é parte da inspiração estética da facção mais colorida e crespa da Vila Madalena: Meninas bonitas, de classe média, misturada a meninas de Periferia, um ou outro estrangeiro, salto e maquiagem quase zero, blusinhas e vestidinhos de alcinha, coisas sem sutiã, bolsinhas de alça fina coladas ao corpo, ou sacolas grandes de tecido, cabelos armados soltos, ou em coques feitos sem espelho, curtinhos, tatuagens, chinelinhos, rasteirinhas…Os rapazes são leves, sorridentes, de bermuda, chinelo, cabelo desgrenhado, camiseta engajada ou a do seu time, alguém sempre tem um violão, alguém sempre tem uma cachaça e alguém sempre tem um baseado.

As festas de FFLCH também têm crianças legais! Crianças que estão soltas dos pais, interagindo, brincando com as pessoas, todo mundo participa, quando você vê, tem uma no seu colo, são bem mais legais do que as crianças das outras festas.Nestas festas, não costuma ter muita comida, também, é goró e assunto. E, como têm assunto esses caras!

Eu fui à muitas festas da FFLCH… Hoje, conhecendo melhor algumas pessoas, ficou um pouco mais legal mas, a princípio, eu demorei muito para ser recebida. Eu sou “muito perua” para o padrão da FFLCH e – aqui vem uma parte chatérrima dessas festas – tem assuntos e posturas “senhas” para participar da coisa toda. São Paulo tem uma característica excêntrica, que amigos de outros Estados apontaram. Aqui, toda conversa se inicia com “Você faz o que?” ou, ainda mais direto “Trabalha com o que?” e a minha resposta (“Dança do Ventre”) já gerou distintas reações: Ah, que legal! (levanta e vaza). Ah! (levanta e vaza) Ah, é? (balança a cabeça, me mede, levanta e vaza). Ou ainda, levanta e vai comentar na rodinha ao lado que tem um ET na festa. Já me perguntaram, assim, diretamente “Você faz o que na US?” e eu “Nada… não faço nada na USP, não…” levanto e vazo.

É bem duro ter que “provar minha capacidade de reflexão e discussão, apesar de ser magra, peituda, de unhas enormes e salto alto”. Uma vez, uma moça, numa festa dessas me disse, assim, achando que dizia algo que, realmente, deveria ser dito “Você há de convir comigo que sua aparência induz qualquer um a pensar que você é meio burrinha, meio fútil, né?”… Sim, ela disse. Era uma mulher bem feia, um “expoente do movimento chinelo-e-meia-e-axila-cabeluda” e ela disse com uma certa pena de mim, como se fosse um elogio, do tipo, “Você até parece razoável!” e eu respondi com um sorriso de novela “Não se preocupe, meu bem, eu me explico muito bem em cinco idiomas” (e imaginei, ao meu lado, uma bicha bem magrinha, de cabelo de palito de fósforo, dando um beijinho no ombro, com olhar de serpente).

Fui a uma “Festa da Fefelesh” no Cairo! Vivi por uma semana com uma moça que trabalha com Direitos Humanos, cabelo curto, sem lenço, copo na mão e tem vários amigos e amigas como ela, de Esquerda, dentro de Universidades, estudando Humanas e, claro, falando, falando, falando, tomando e fumando, fumando, fumando. Um modo de vida bem legal, pra mim, comparado restante do Menu, sinceramente.

Chegando à Festa (que era na putaqueopariu, claro) minha colega enfiou-se festa adentro para abraçar pessoas e não me apresentou a ninguém. Eu estava de preto, costas transparentes de renda, com um lenço espanhol nos ombros, maquiadíssima, de cabelo feito, jóias, perfume e, claro, todos os olhos sobre mim. (E isso não tem glamour nenhum, estava inadequada e sem jeito).

Me sentei numa almofada, com meus cigarros e fiquei olhando as pessoas. Somente, neste momento, me dei conta que estava numa festa da Fefelech! Eles estavam todos lá: o cara do violão, a moça doida gritando “Vamolá! Vamolá!”, crianças legais soltas, um fulano bolando um baseado e as moças soltinhas. Tinha uma egípcia lésbica negra! De cabelão black, vestida e sentada meio Cássia Eller, com um puta baseadão na boca, olhando a mulherada. Eu, inclusive. Ela tinha uma tatuagem no ombro, mas achei melhor não ficar encarando.

Chegou um tipo tão animado, com um corte de cabelo de Cascão e uma camisa que, olhando de relance, achei que era do Corinthians. O moço chegou a ver minha cara de espanto e, só de raiva, me olhou com uma cara de espanto maior ainda! Não, não era uma camisa do Corinthians.

Tinha um Orientador da FFLCH. Os orientadores são as figuras mais VIP dentro da FFLCH! A presença de um orientador (ele tem a mesma estética, uns 10 ou 15 anos mais) é percebida, imediatamente, pela reação das pessoas, Um orientador pode agregar muito valor a uma festa.

A música, nas festas da FFLCH começam em altíssimo nível! Toca aquela do Chico, toca Milton Nascimento, Beto Guedes… Então, ainda que eu fique completamente só, quando alguém liga o som, o Beto Guedes começa a cantar pra mim (eu finjo que é só pra mim!) e minha solidão acaba. No Cairo, o Ahmed Addawia começou a entoar o Mawal de Bint Il Sultan, alto, bem alto, só pra mim e, de uma hora pra outra, estava com a melhor companhia que poderia ter no Cairo, deixei meu pescoço cair para trás, até apoiar-se em uma almofada, fechei os olhos e comecei a gostar de estar lá.

A festa foram várias festas. Talvez, até agora, ainda esteja saindo e entrando gente daquela casa! Foram uns 4 grupos distintos, noite adentro e uns bestas, feito eu, que dependiam de carona e ficaram a noite toda. Chegou um grupo de meninas de saias mais curtas e cabelos mais compridos, dentre elas, uma de saia branca transparente, com uma calcinha minúscula, enfiadinha e eu fiquei mais tranquila. Moças de calcinhas enfiadinhas dão algum sentido à minha presença. Eu não vou explicar isso.

A moça da calcinha enfiada era a mais próxima que havia de uma “Dançarina” e dançou horrores! Eu, sentada, passei um longo tempo observando os egípcios dançarem e, depois, dançando entre eles e descobri várias coisas sobre nós…

Uma moça desajeitada egípcia dançando dança do ventre é tão desajeitado como qualquer gringa, só que de um outro desajeitamento. É um desengonço árabe, mas é desengonço igual… Não é genético porra nenhuma, como eu sempre soube. Os meninos dançam melhor que as meninas porque tem tanto orgulho de sua condição de homem que são mais alongados, mais livres, mais soltos. Eu não sei dançar música árabe, dançando, simplesmente. É um sofrimento.. Fico fingindo sei lá o que pra não dar pala. Não gosto de dançar em situações assim… Não estava me sentindo à vontade nem sentada, em silêncio, muito menos para dançar. Mas (vou confessar!) meu lado mais Malévola dizia lá de dentro “Mostraí como faz essa porra, porra!”. Mas, eu não dei a mínima pra essa bobagem. Observar valia mais a pena.

Apesar da música começar, sempre em alto nível, nestas festas, aqui no Brasil, tudo acaba em axé, funk, pagode e tem dois tipos de reação: Aqueles que falam “ah… porra!..”, mas, sem ser muito a sério (De-mo-cra-ci-a, por favor!) e o outro grupo, chefiado pela moça do “Vamolá!” que desce até o chão… Alguns se controlam mas, chega uma hora, garrafas quase vazias que toca “aquela do É o Tcham” e tooooooodo mundo vai.

No Cairo, é a hora do shaabi, das breguices do passado, do Chik chak chok, do Haram tahebak e, claro, nem eu resisto. Uma delícia! Depois, veio uma sessão black, mas como vagou um sofá, não resisti e me joguei num canto fofo, entre almofadas.

Havia um casal bem bizarro: Uma moça com pinta de lésbica, cabelo moicano, camisa azul-Roberto-Carlos, calça jeans meio grunge e tênis (um horror, diga-se de passagem) e um sujeito de cabeça raspada, vestido meio igual a ela e ambos, bem doidões. Eles chegaram quietíssimos e, acho que, enquanto tentava entender alguma coisa que se dizia, eles foram ali e tomaram um negócio diferentão…

Os dois começaram a fazer danças bem pra lá de ousadas, até que se jogaram no sofá ao meu lado. Quando me dei conta (estava distraída vendo uma moça de vestidinho branco – de ir ao Boi no Morro do Querosene – cantando, lindamente, sei lá o que em árabe) percebi que ambos olhavam para mim e falavam sobre mim.

Outra coisa que descobri nessa festa é que o pessoal da USP do Egito são tão, mas tão egípcios que não têm nenhuma dúvida com o fato de eu não ser. Falam de mim em árabe na minha frente… É bem engraçado “Quem é essa aí? … Sei lá?… Não tenho a menor idéia… Amiga de quem?.. Nunca vi…” e eu, entendendo tudo. Acho meio mal educado isso, sinceramente… Não custava me perguntar, ao menos, se eu falava árabe, antes de começar a discutir minha presença em baixo do meu nariz. O casal: “Linda, né? É… Gostosa… Quem é… sei lá… você gostou? (ele perguntava pra ela) Sim!” bla bla bla… (e, eu pensando, “ai, carai”…). Até que o moço careca da namorada meio lésbica vira pra mim:

– Where are you from? – Brasil! – New York? HEEEEEY GUUUYS!!! WE HAVE A GIRL FROM NEW YORK HERE! (e eu, pensei alto “ai, carai…”). Vou seguir em português…

– Você é ninfomaníaca? (sim… ele perguntou isso com um sorriso bêbado, meio torto)

– Não… eu não… Na verdade, eu sou uma pessoa bem sem graça… Pareço especial, diferente, mas… na verdade… não. (dizia, afundada no sofá, com meu cigarro na mão).

Ele continuou com um papo que, a música alta e meu desinteresse não me deixaram ouvir bem, chamou a namorada, que veio sorrindo, com aquela cara de doida, eu disse “Ai, carai… Vou pegar alguma coisa pra beber” e fugi para a cozinha. Não sei há quanto tempo eu estava lá e queria muito ir pra casa… Mas… estávamos de carona com o amigo do amigo que descia até o chão…

Na cozinha, achei um copo, botei um suco dentro (não estava bebendo nessa época, era Ramadan, prefiro evitar) me joguei numa cadeira e fiquei por um momento, pensando no porque de tudo isso… Até que fui interrompida por uma bela moça do cara de Nefretite (disse a ela que iria conta que conheci uma descendente de Nefretite, que seria mais chique, e ela adorou!). A moça me fez uma pergunta qualquer sobre a cerveja gelada, que eu não soube responder, pegou uma e puxou um papo na cozinha (graças a Deus!).

Por alguma razão mágica (que considero, às vezes sorte, às vezes azar) as pessoas olham pra minha cara e saem contando tudo. Eu ouço histórias tão pessoais, às vezes, pesadas, de pessoas que mal conheço, com uma certa frequência.

Começamos uma conversa sobre a condição da mulher no mundo, no Brasil, no Egito, contei algumas histórias, contei que havia nazistas no Brasil, ao que ela lamentou com muita sinceridade “Poxa… nazistas no Brasil, exatamente, é uma coisa muito séria e decepcionante… um país tão mestiço, tão tolerante!” e eu fiquei bem embaraçada de ouvir isso dela.

Ela me contou que duas moças foram assassinadas no Cairo por reagir a assédio sexual. Uma, atropelada e a outra, tomou um tiro. Nada disso saiu na Imprensa Formal, são coisas que os egípcios consideram muito difíceis de discutir, também, assunto “interno” e não discutem. Os assassinos foram presos, pegaram penas brandas por seus crimes e estas meninas da festa, juntamente a outras e a rapazes também, estão lutando para reverter estes e outros casos, envolvidos com ONG´s, etc. Eles têm muitos amigos presos também e conexões para saber de seus paradeiros, fazer visitas… Em alguns momentos, sinto-me dentro de um Filme brasileiro de 1968.

Ela falou um pouco de sua infância, em um Povoado distante do Cairo, tradicionalíssimo e me contou que é uma das únicas meninas que não foi circuncidada, entre suas primas e amigas de infância, porque sua mãe mentiu. Quando começaram a perguntar se ela já havia “feito a menina” ela, simplesmente, disse “Sim!” e acabou o assunto. Ela me conta, também, que muitas das meninas que estão nesta festa são circuncidadas e que ninguém fala sobre isso… Simplesmente, não falam. Não sabem, ao certo uma sobre a outra e não tem interesse em saber.

Ela me conta ainda que, quando “desbundou” (tirou o lenço, largou a religião, foi morar sozinha, etc) decidiu se “auto deflorar” porque não queria o peso da virgindade em seu corpo e não queria que isso fosse um critério para um homem escolhê-la. Pode parecer bem estranho, mas a compreendi e, sinceramente, fiquei orgulhosa dela! É uma atitude de uma coragem enorme e caráter, profundamente, revolucionário, para uma menina egípcia de vinte e poucos anos.

Quando voltei pra sala e vi essas moças sem lenço, sem sutiã, sorrindo, de vestidinhos, fui invadida por dois sentimentos antagônicos, de pena e orgulho, de alegria e tristeza, de privilégio de estar lá e testemunhar sua sobrevivência e fiz muita força para não chorar.

Eu não consigo estar só lá ou só aqui… Carrego o Brasil comigo pro Egito, trago o Egito na mala, amando aos dois com amores distintos. protegida pelas canções que costuram toda a minha vida e me sentido próxima de todas as mulheres do mundo, desejando muito poder cuidar de cada uma delas.

O vô Lídio, o Bola e o Cachaço

Lídio. De acordo com a Wikipédia, O modo lídio forma-se estabelecendo como tônica a quarta nota da escala diatônica, podendo ser classificado como um modo maior. Entendeu? É um modo. Ponto.
E também é o nome do meu avô, que faleceu no dia 1 de abril passado (bem humorado o vô Lídio!). O vô Lídio era louro, de olhos muito azuis, alto, muito alto, devia ter uns 3 metros. Com o passar dos anos ele foi diminuindo como tudo que conheci no Paraná, diminuiu! Eu brincava de montar em melancias e demorei um tempão, até que meu irmão mais velho me informou: “Não! As melancias do Paraná não são gigantes! Você era bebê quando montava nelas!” o que me deu uma certa frustração.

Eu achava que Lídio era um modo Menor… Talvez porque o tom que falava meu avô parecia “meio menor”, além do fato dele falar uma língua própria que somente minha avó entendia.

Ele não era, originalmente, meu avô! Ele era um “homi alto do zóio azul” que roubou minha avó do meu avô original. Um cearense me disse, certa vez, que as baianas são assim, mesmo: “É minha filha… baiana é assim… um belo dia ela pega uns panos de bunda e dá no pé!” disse o taxista (abandonado por uma baiana boa?).

O Original, era mistura de português com Negro (de onde veio meu super cabelo-duro!) e minha avó, baiana, de ascendência evidentemente indígena (daí, os olhos puxadinhos que todos herdamos do papai!). Ela era linda! Linda, benzedeira, feminina, sempre de lenço na cabeça e uma gargalhada que fazia tremer o chão da cozinha!

Me lembro desses dois, com muito amor e um pouco de “maquiagem da minha memória”, talvez. Eu fui tão feliz nesse período “meio lá meio cá”, construindo minha identidade “meio caipira” da qual me orgulho tanto, que talvez tenha excluído um detalhe aqui e ali! Lembro do cheiro do pão saindo do forno a lenha, da bicharada sendo frita na panela, dos pés descalços de minha avó e de suas “feitiçarias”. Meu avô ficava mais lá fora, mesmo, cuidando dos bichos vivos, matando coisas que ele considerava condenadas à morte (como cobras e raposas) e somente entrava para comer ou dormir. O restante do dia era na lida, na roça, na Tuia e, no final da tarde, na varanda com seus cigarros e sua cachaça.

Quando estávamos todos lá (eu, meus pais, meus – à época, 3 – irmãos), além de possíveis “anexos” da minha família, essa rotina era interrompida pela nossa barulhenta presença mas, como lugar de homem era pra fora e, de mulher, pra dentro, passei muito tempo nessa cozinha com minha avó, seus pães, queijos e carnes. Era tudo que a gente comia, além, claro, de melancias gigantes, mangas que manchavam minhas roupinhas e toda a frutaiada e coisas verdes de Horta.

Minha mãe a chamava de mãe e lhe devia obediência, portanto, com quatro filhos, sendo três moleques que não paravam quietos nem um segundo, eu “sobrava” para minha avó, o que era um privilégio imenso! Hoje, o vô Lídio, minha avó Maria e meu pai estão juntinhos no céu, partilhando deliciosas lembranças, enquanto eu e minha mãe fazemos o mesmo aqui na Terra.

O Bola era um cachorro. Na verdade, foram vários, todos chamados Bola, ao longo de minha infância. Como a terra do Paraná é muito vermelha, os cães eram todos, meio cor de tijolo. O vô Lídio tinha um jeito todo peculiar de lidar com animais em geral. Por razões dele que JAMAIS questionamos, principalmente porque ele andava com, no mínimo, um revólver e um facão, daquele jeito lento, com botas enormes (com espora de verdade!) e a gente via o “facão cantar” toda hora! Lá vinha o vô: Cigarro na boca, um bicho morto numa mão, o facão ensanguentado na outra e uma longa história, cheia de detalhes de quase morte na captura do animal.

Seu procedimento com os Bolas era sempre o mesmo: Castrava, cortava fora o rabo e as orelhas. Daí, sem rabo, nem bolas, nem orelhas, virava uma “Bola cor de Tijolo” e minha avó (sabe como é baiano…) manteve o nome, já que a aparência do cão era sempre a mesma.

Ela dizia para o cão (do mesmo modo como falava com todos, exceto com o vô Lídio, para quem ela se dirigia muito pouco e em um tom mais “respeitoso”, dizia: “Bola, meu, fi, pegue ali a galinha, a do pescoço pelado, assim, assim…” e, lá ia o tal do Bola, voltava com a galinha “semi-morta” na mão, dava na mão da minha avó, abanava seu não rabo esperando alguma coisa que ela jamais deu e ficava assistindo à cena. Ela pegava a galinha, botava em cima da pia, pegava um facão de cozinha e “zap!” sacava-lhe o pescoço, do ombro pra cima (galinha tem ombro?). Pendurava a bichinha de cabeça pra baixo, em baixo do pescoço (ou ombro?), botava uma bacia pra escorrer o sangue. Desse sangue, fazia uma espécia de “chouriço de galinha”, o restante, ia tudo pra panela! Desde pequena, como pés, pescoço, asas, moelas e, numa família com 5 homens (no mínimo!) uma menina como eu experimenta uma coxa de frango, praticamente, depois dos 12, 13 anos de idade. Eu continuo preferindo pés e asas. A vovó separava essas coisinhas pra mim numa bacia de plástico pequena, dava na minha mão (sem talher nenhum, claro!) e adorava me ver me lambuzando de galinha. Escrever isso me dá água na boca e nos olhos…

Todo mundo trabalhava, inclusive o Bola! Eu aprendi a depenar galinha e passei a fazer esse “serviço”, com uns 5 ou 6 anos. Debulhar milho seco pra galinha, pilhas de milho, é um serviço bem dolorido. Pode parecer inacreditável, mas até descascar amendoim (pilhas e pilhas) machuca demais as mãos. Me lembro de enfiar minhas mãozinhas na água gelada do Paraná pra aliviar essa dor. E, olha, que eu era “café-com-com-leite” nessas atividades. Mais tarde, já com uns 9 ou 10, podia manejar facas e, à exceção da decapitação, todo o restante eu poderia fazer, exceto, claro, também, cozinhar a bichinha, já que a mão da minha avó era o que, realmente, valia.

Meu pai tinha um irmão por parte do vô Lídio com sabe-Deus-quem (eles nunca explicaram essa parte da história mas o que entendemos foi o seguinte: Vovô era viúvo e tinha um menino, vovó era casada e tinha 11 meninos. Meu avô propôs (nos anos 50, no interiorzão de Minas, quase divisa com a Bahia) “Foge comigo, Maria! Larga tudo pra lá! Eu levo meu menino, você escolhe um dos seus e a gente vai-se embora pro Paraná, onde ninguém vai achar a gente!”. Plano perfeito! “Perfeito”, pelo menos, pra mim, porque o menino que ela escolheu foi, exatamente, meu pai. Não era o mais jovem, nem o mais velho, nem o único menino e quando eu, já adulta, tive coragem de perguntar o que ninguém havia perguntado “Por que o meu pai, vó?” Ela respondeu “Ah… era o que tava mais na mão…” e deu sua gargalhada de tremer o chão. Ponto. Eles cresceram assim: O meu pai era dela e o meu tio, dele. Cada um tinha seu filho, “meio juntos”… Na cozinha, meu pai se dava bem e se lascava na roça, meu tio, o contrário.

Se a minha avó cozinhasse uma galinha só, na ausência do meu avô (o que era raro, mas acontecia), as coxas e o peito eram do meu pai e o restante, dividido entre nós. Aquilo não significava nada, nenhum tipo de injustiça ou sofrimento, porque a ordem geral das coisas era totalmente diferente do “normal”. Os homens eram “machos armados” e nós os servíamos.

Meu pai deu uma boa transgredida nessa ordem e, às vezes, somente pra “provar minha macheza” em público, me botava pra montar ou atirar, coisas que ele me ensinou e eu adorava fazer! Montar um cavalo sem cela ou atirar de espingarda, aos 6, 7 anos de idade faz a Disney parecer uma grande piada… No meio do mato, crianças não são “poupadas” de quase nada. Cresci vendo animais sendo abatidos, já beirando a adolescência (aquela chatice, Deus me Livre…) tive uma fase-frescura que não queria comer carne porque tinha dó dos bichos, mas como na minha casa não tinha muito essa de “criança querer”, a frescura passou rapidinho e aquilo era uma coisa “da vida”.

Cachaço é o nome dado ao Porco não castrado, usado para reprodução. Na minha memória, o cachaço (também trocava de cachaço…) era do tamanho de um rinoceronte, uma coisa tenebrosa, da qual a gente não podia nem pensar em chegar perto! Eu entrei muito em chiqueiro, pra pegar os porquinhos bebês no colo e pegar bicho de pé. O bicho de pé é um vermezinho que entra no pé de crianças sem noção que ficam sambando em chiqueiros. Meu micropezinho era um feudo de bichos de pé. Meu avô me pegava no colo, pegava seu facão e, com a pontinha do facão, tirava os bichinhos de mim. Doía muito e eu jurava pra todo mundo que nunca mais entraria no chiqueiro. Mas daí, vinha aquela ninhada… Porquinhos cor-de-rosa, prontos para serem ninados e eu não resistia… Bebê porquinho no colo o dia inteiro, no dia seguinte, lá vinha o vô, com 3 metros de altura “deixa eu ver esse pé!” e sacava seu facão…

Eu comia tudo que via pela frente, queria experimentar: frutas verdes, verduras, direto da horta e até mesmo coisas que não eram de comer, tudo sem lavar… Dias descalça, aprontando… Meu cabelo ia virando um rastafari e eu estava sempre uma imundice. Meu pai brigava com minha mãe “Maria, pelo amor de Deus, dá um banho, penteia, põe uma roupa nessa menina, parecendo um tatu!” e ela dizia “Eu não venço! Ela não pára!”. E voltava pra casa com bicho de pé, vermes na barriga, coisas coladas no cabelo e essas coisas somente apareciam em São Paulo, no Paraná, a gente nem percebia!

E então, um Certo Bola cismou que era porco e começou a frequentar o chiqueiro. Com o tempo, foi ficando com jeito de porco, cara de porco, cheiro de porco, comendo lavagem. Um belo dia, depois de assuntar essa coisa do
Bola ter virado porco, meu avô pegou seu revólver e ia caminhando em direção ao chiqueiro. Eu, não me lembro como, entendi o que iria acontecer: O Bola seria sacrificado e eu tinha que fazer alguma coisa.

Comecei com o “charme com beicinho”, murmurando entre manhas “Vô… não… não… por favor… não mata o Bola… ele é bonzinho!”. Eu era muito pequena mas sabia que raposas matavam galinhas, cobras picavam pessoas e vacas e porcos, a gente comia! Então, todos estes tinham lá “seu bom motivo pra morrer”, mas o Bola! Cachorro não faz mal a ninguém e ele trabalhava, até começar a andar entre os porcos… Era uma fase…

O charme com beicinho sequer ralentou o passo do meu avô e então, tive que tomar uma atitude mais drástica e entrei no “modo Chilique”. Foi um show à parte! Eu comecei a gritar, me joguei no chão, agarrei a perna do meu avô (que me arrastava junto com suas passadas) e mentalizava “Pai! Me ouça! Eu estou quase morrendo!”. Outra técnica que aprendi de menina era gritar de um jeito, com “voz de cabeça” que eu ia ficando roxa, até que, de nossas costas, ouvi a voz do meu pai “Lídio!” – ele nunca chamou meu avô de pai! – e o véio Lídio parou. Meu pai vinha andando com um olhar que quase me fez me arrepender, mas o Bola tinha uma chance!

Estava funcionando! Larguei a perna do meu avô, enchi os pulmões de ar e fui gritando, dramática, roxa, descabelada “Paaaaaaaaaaaaaaaai! Paaaaaaaaaaaaaaai! Nãaaaaaaaaaaaao! Nãaaaaaaaaaaaaao!!!” e ele, desesperado, me botou no colo, ensopada de lágrimas, tremendo de medo – medo de tudo! até de um possível duelo de bang-bang. Seria assim: Meu pai e meu avô virariam as costas um para o outro, contariam dez passos e isto duraria uma eternidade que assistiríamos eu, o Bola e o Cachaço, todos torcendo para o meu pai! “Bang!” meu avô cairia duro e eu traria o Bola comigo para São Paulo. O plano estava todo armado!

Meu pai tinha um jeito de olhar nos olhos de botar muito (mas, muito!) medo – esse, eu também aprendi! – “O que tá acontecendo, Lídio?”. Eu estava no colo, os dois, armados, de chapéu, olhos nos olhos. Era a filha única do filho único da Maria-Baiana-Bruxa-que larga a família. Meu avô estava quase encrencado. Falando tudo meio atropelado, eu em bebenês engasgado de choro e o vô naquele lidiês que só ele entendia, até que meu pai disse “Vai matar o cachorro porra nenhuma, Lídio! Que isso?”. Minha avó, lá da janelinha da cozinha, muito malandra, grita “Deixa de bestage cês dois e vem comer!”.

Assim, em silêncio, voltamos. Enquanto isso, no chiqueiro, Bola e os porcos celebram sua vitória num abraço coletivo.

No dia seguinte, meu avô foi pra Roça e eu passei o dia tentando convencer o Bola a voltar a suas atividades de cão e, para tanto, entrando no chiqueiro, o que também já havia sido proibido. Sentia que estava complicada. Até a última vez que vi meu avô, já com quase 40 anos, todas as vezes que o vi na vida, pedi sua benção e beijei sua mão. Naquele dia, fiz um desenho, fiz coisas de “menina bonitinha”, tentei chantagear minha avó para que ela intervisse, coisa que ela jamais faria, já que “Criação é coisa de homem!” e esperava que ele voltasse de bom humor.

Ele chegou da roça, pedi sua Bênção, puxei seu velho saco (meu avô sempre teve a mesma idade! Ele sempre foi velho, somente diminuiu de tamanho com o tempo) e ele me olhava de esgueia (nesse contexto o “lh” da palavra “esguelha” ficariam absolutamente inadequados!). Não tocou no assunto do Bola, mas eu não resisti.

“Vô, o Senhor não vai matar o Bolinha, vai?” e ele, falando baixo e lentamente me explicou “O Cachaço vai matar ele, fia… Quando as porca entrá no cio, cê vai vê! Eu ia matar ele com um tiro, um tiro só, bem na cabeça, não dói nada, os porco vão judiá dele e a culpa é sua!”. Eu não entendi nada… Pensei “as porca entrar onde? que cio? elas não saem daquele chiqueiro véio!”. E fui perguntar pra minha mãe: “Mãe, onde fica o cio?” (afinal, era só não deixar as porca entrar!) ela “O que?” eu repetia a pergunta e ela repetia o “O que?” até que eu expliquei o que havia me dito o vô Lídio. Ela riu sem jeito e me explicou “é quando elas estão prontas pra ter bebê!”.

Dentro do chiqueiro havia um “quartinho” onde ficavam a porca e seus bebês “Já sei onde é o cio!”. O plano era simples: Era só fechar a porta do quartinho e não deixar que as porcas entrassem… Quando você tem 6 anos de idade, realizar um plano destes exige muito tempo e cuidado. Levei um dia inteiro, entre a busca de uma boa oportunidade, sem testemunhas, desculpas esfarrapadas e muitos “eu te amo, mamãe, eu te amo vovó”, bem bonitinha, pra ninguém desconfiar.

Meu pai, quando passávamos mais tempo no Paraná, claro, ia pra roça como todos os homens e, ao voltar pra casa, deu falta de mim e foi direto ao meu “canto preferido-proibido”. Chega no chiqueiro, está a seguinte cena: Eu lá dentro, pura merda de porco da cabeça aos pés, tapando a porta do quartinho da porca com coisas que eu peguei sem autorização nem fiscalização de nenhum adulto, já escurecendo.

Ele chama meu nome daquele jeito… Tinha um jeito que era, praticamente, “Vem apanhar”. Tinha o grito, meia dúzia de xingamentos (que não passavam de “menina boba” “menina feia” “menina porca”) e o som inesquecível da cinta passando nervosa pelos passantes da calça dele. É, eu iria apanhar, mas era por um bom motivo: As porcas, simplesmente, não entrariam no cio!”. Ele me desceu a cinta, sem dó! Meu avô vinha logo atrás dele (engraçado isso, quando um exagerava, o outro segurava a barra) “Que isso, Joel? Batendo na menina?”. Meu pai apontou a palhaçada que eu tinha feito no chiqueiro e me disse “Você vai arrumar isso agora!”. Meu avô intercedeu “Já está de noite, amanhã a gente vê isso”. Me estendeu a mão (uma mão enorme, áspera de puro calo e rachaduras!) e eu entrei pra casa. Agora era uma coisa coberta de merda de porco, xixi (o meu próprio, já que cintadas sempre estimularam o funcionamento da minha bexiga), descabelada, descaça e quase sobra pra minha mãe. Meu pai, cinta na mão, disse “se essa menina entrar no chiqueiro mais uma vez – balançou a cinta, que sorria de satisfação, sentindo-se uma Naja Venenosa – a gente vai conversar” (com aquele olhar pavoroso que ele fazia).

O clima na mesa estava de cortar com faca! Dois revólveres sobre o guarda-comida. Dois homens putos, duas Marias apavoradas, tudo culpa minha e meus três irmãos me olhando com fúria! Um deles ainda disse pro outro, entre dentes “se fosse a gente, heim!” e eu pensei, meu Deus! Acho que meu pai iria capá-los, cortar as orelhas e o pinto, já que eles não tinham rabo. Fiquei pensando por que é que a gente, que é gente, não tem rabo e concluí, comendo um pé de galinha, que era porque os homens usavam calças e se fizesse um buraco na bunda, pra passar o rabo pra fora, a bunda apareceria, o que era absolutamente proibido.

No dia seguinte, quando o Sol nasceu e os homens foram pra Roça, minha mãe correu concertar a cagada que eu havia feito no chiqueiro e falou comigo, muito sério, que eu não poderia, definitivamente, mais, entrar lá ou ELA tomaria uma surra… Nela, ela batia de mão, mesmo, era feio e esse foi “O” argumento que me convenceu. Adeus chiqueiro.

Nós, quando crianças, desenvolvemos um certo tipo de intuição quando os adultos estão escondendo alguma coisa e esse era o clima da casa. Todo mundo sabia de alguma coisa, menos eu. Meu irmão, o mais jovem dos três, estava com cara de choro, minha mãe também, tinha um silêncio estranho e os homens não estavam na casa, nem na roça (não era dia de roça, não me lembro bem porque). até que eu escapuli e segui meu instinto.

Lá estavam os 4. Meu avô e meu pai dando um jeito na “cena do crime”, o cachaço fumando um cigarro,  ótimo e sem culpa e o corpinho do bola estraçalhado, aos pedaços pelo chão… Minha mãe havia aberto a porta do cio, as porcas entraram lá e o Cachaço matou o Bola, como meu avô havia explicado… Meu pai me olhou de um jeito que dispensou palavras e eu saí correndo.

Minha mãe me pegou no colo pra me consolar. Aquilo, pra mim, era quase como morrer e eu disse “Mãe eu juro, juro, juro que nunca mais vou entrar nem no chiqueiro, nem no cio!”. Ela riu de mim e me abraçou com um amor enorme, como ela me abraça pra me consolar, com aquele peito macio dela, sua voz de Soprano, seu cheirinho. Enxugou as lágrimas que ela continua enxugando, me olhou por um tempo e disse “O que é que eu faço com você, heim?”. E não fez nada, só me amou. Dormi. Esqueci. Dias depois,havia um outro Bola e eu falei pra ele que nem ele nem eu podíamos, nunca mais, que eu havia prometido, entrar no chiqueiro. Muito menos, no cio!