Nosso Mercado e Nossa auto-estima

Esse é daqueles textos que escrevo sem a certeza de que aquele que lê, de fato, compreende o que quero dizer… Não é uma questão de subestimar a capacidade de interpretação das pessoas, no mínimo, não somente isso, mas é um texto que toca numa ferida muito profunda da nossa Cultura, daquelas que muita gente se recusa a ver… Aqueles que “não admitem que há racismo/machismo/nazismo no Brasil” não irão, de jeito nenhum, “tolerar esse texto”. Mas… a Situação pede e talvez seja eu, mesmo, a pessoa a tocar em mais essa ferida que é a baixíssima auto-estima do Brasileiro, de um modo geral, e a necessidade de consumir qualquer coisa, contanto que seja “Maide in Seilaonde”, contanto que não seja nossa…

Vou começar pela “Escova Progressiva” que foi desenvolvida aqui no Brasil, mais exatamente, no Rio de Janeiro, onde cabeleireiros do Mundo inteiro se ocuparam em visitar para aprender a técnica que é vendida mundo afora como “Alisamento brasileiro” e, aqui no Brasil, os nomes “Escova Francesa”, “Escova Marroquina” foram o que fizeram o “negócio engrenar”.

Acabo de voltar do Egito e, como em todas as vezes que visitei o Egito, fui ver a Soraia (Zayed, brasileira, brasileiríssima, trabalhando no Cairo há 15 anos) e, mais uma vez, constatei que é (sem nenhuma possibilidade de comparação!) o quadril mais “ágil” da história da Dança do Ventre. Pode “não gostar”? Acho que sim… Pode não gostar de chocolate, também, agora, dizer “que não é bom”? Acho que não… O que faz da Arte, Arte de fato, entre outras coisas é o Artista ter-se inventado e reinventado, assinado claramente seu trabalho e influenciado o meio por onde circula! Tem “Mestres Egípcios” que sequer conhecem a Soraia (ou admitem conhecer, sei lá) que ensinam “Coisas de Soraia” em suas aulas e é possível ver essas “coisas de Soraia” em corpos que jamais tiveram contato com ela, pessoalmente, porque ela faz parte da História da Dança do Ventre Moderna, parte das transformações dessa história e influenciou, ainda sem querer, ainda sem “ser amada por todos” a Dança do Ventre, como um todo. Tenho a nítida impressão de ser a única pessoa no Brasil (sim, fora do Brasil, muita gente sabe disso!) a ter constatado isso…

No final do Ramadan, vem “O Feriadão do Mundo Árabe” que é “Eid”. Essa é uma época de celebração, de “recompensa” pelo mês de Jejum (entre outras “limitações” impostas aos Muçulmanos) e é hora de “deitar o cabelo”. O Egito é e sempre foi o “lugar ideal de deitar o cabelo”! Tem festa, cabarés, Dança do Ventre, arguille, o Egito não dorme, o Egito é “Laico” (entre aspas, mas é!) o que significa que até mesmo uma “pecaminosa cervejinha” pode ser encontrada em toda parte! Assim, a Arábia Saudita “desce toda pro Cairo” pra aproveitar. Esse ano, vi grupos de mulheres sauditas (sem a “proteção de seus homens” é, o Mundo mudou!) em cabarés… Com essa presença maciça deles, o cabaré fica “Todo Khalige” (toca músicas do Khalige, pessoas dançam danças do Khalige) e vi mulheres (algumas bem cobertas para o ambiente, outras, penduraram seus “hijabs” no Toillet e saem de shorts curtos, minissaias) livres, celebrando sua vida, uma coisa muito linda de se ver. Inspirada nessa alegria, nessa liberdade “de curto prazo”, me reapaixonei pelo Khalige e voltei para o Brasil muito a fim de estudar, preparando um número e figurino para meu próximo trabalho aqui, com aquele “delicioso friozinho na barriga” do desafio, da coisa nova, do desejo de ser aprovada (sim, claro que tenho, como todo mundo, especialmente, apresentando coisas fora da minha “região de conforto”). Fui, Youtube adentro, em busca de inspirações…

Vi muita “Baixaria” (mulheres se esfregando no chão, umas nas outras, algumas coisas de gosto bem duvidoso, no intuito óbvio da “sedução escrachada”, coisas dispensáveis para os olhos de uma mulher, de um modo geral), continuei minha busca… Poucas mulheres árabes, especialmente, “nos anos 2000” e, com a palavra chave “Khalije” ou “Khalige” cheguei na Warda Maravilha (brasileira, brasileiríssima) e posso dizer aqui, sem medo de errar: A melhor bailarina de Khalige de todas… Não só a melhor como, na verdade a única que, pros meus olhos, “entendeu esse negócio que vi no Egito”, essa “liberdade volátil”, essa “celebração sem pano preto cobrindo o rosto”, das mulheres sauditas… É bonito, é forte e delicado, tem uma sensualidade “cuidadosa”, uma coisa bem especial e, principalmente, uma energia totalmente diferente da Dança Oriental ou Dança do Ventre Clássica… Outra coisa, de outro povo… Um povo com o qual a Warda tem convivido por (acho que) uns 20 anos. Uma coisa que só ela “pegou”.

Minha apresentação no Egito é, sempre, uma certa “dor de cabeça” pra mim… Tenho que estar no meu melhor (melhoríssimo!) modo, apresentar alguma coisa que seja “eu, com certeza”, na frente dos maiores mestres de Dança do Ventre do Mundo (já dancei pro Mahmoud Reda, Nagwa Fouad, Mona Saiid, Raqia Hassan, Farida Fahmi, Dina, Randa, Tito, Yusri Sharif, somente pra citar alguns) é uma coisa que faço com o coração na mão (e, porque não dizê-lo, com um figurino de 4 dígitos, 4 “dígitos-dólar”, quero dizer) e, claro que a presença de olhos familiares na platéia deixa tudo mais gostoso! Juntos, os que “me testam” e os que “me adoram”, formam um grupo bem delícia de me apresentar. São “dois desafios em um” porque agradar fãs, não necessariamente é uma coisa fácil. O fã tem a “sua Jade” e não tolera menos do que a “Jade que traz para o Show em sua memória e em seu coração” é aquele público que pode “não gostar dessa vez” pode “gostar do que você fazia antes”, é uma presença importante pra mim, pra que eu não corra o risco de “me perder”.

O que aconteceu no Egito esse ano foi um tanto pior do que nos anos anteriores, quando boa parte dos brasileiros que estavam no Cairo, estavam ocupados com passeios e não puderam me ver. Esse ano não havia UM ÚNICO BRASILEIRO na platéia no dia do meu Show. Além da divulgação oficial do Festival, fiz também, uma divulgação minha, em bom português, com o dia e horário do show e da minha aula. A “gringaiada” que não estava atenta às divulgações, foi me parando no Festival pra perguntar “quando você vai dançar?” e estavam todos lá. Algumas brasileiras me disseram outra coisa (isso, nos 5 anos que dou aula no Egito!) “Jade, queria tanto ver seu show/ir à sua aula, mas, infelizmente, não vai dar porque vou seilapraonde”. Nenhum olhar familiar, nenhum aplauso “em português”, nenhuma foto comigo e meu figurino de deixapralá quantos dólares…

No dia seguinte, foi minha aula… Duas brasileiras no grupo. Uma excelente bailarina em ascensão no Mercado brasileiro e, pra minha sorte, minha aluna aqui de São Paulo (a Bruna Nasif, a saber) e a bela Jéssica, que pegou segundo lugar no Concurso Profissional no Festival que vive e trabalha (muito bem, obrigada)  em Paris.

Da parte dos “Mestres” o que ouvi foi que “não há o que dizer ou ensinar ou somar ao meu trabalho”. O respeito que a Randa Kamel tem pelo meu trabalho é suficientemente provado pelo fato de ela me convidar para trabalhar com ela (não sei se alguém “reparou” mas eu não organizo grupos para ir para Festivais no Egito! Estou no meu segundo Festival e, em ambos, fui convidada pele qualidade do meu trabalho). A Mona Said que é, junto com a Fifi Abdo, minha “primeira professora” me “aprovou” em 2006 (há dez anos). Essa aprovação de meus mestres, mais “a fama internacional”, mais eu estar “aqui” há 25 anos, mais o fato de que, de cada 10 bailarinas incríveis no Brasil, 8, 9 passaram, ou ainda passam, pelo “meu espelho” me dão segurança (só faltava não ter nem isso, né?) de que meu trabalho é bom sim e muito bom.

Então, chego a conclusão que o “Problema” que tenho, na opinião do Mercado de Dança do Ventre do Brasil é o mesmo da Soraia e da Warda: nasci aqui. E o que quer que tenha sido “made in Brasil” não é, mesmo, grande coisa… Bailarinas estrangeiras que pedem pra tirar foto comigo, que fazem ou fizeram aula comigo fora do Brasil já foram convidadas para trabalhar aqui em condições que jamais foram ou serão oferecidas para mim (ou pras minhas contemporâneas, Soraia e Warda) entre estas “convidadas”, inclusive, meninas que tem menos tempo de vida do que nós três, de experiência profissional na Dança do Ventre.

A Soraia e a Warda saíram fora… Estão lá do outro lado do mundo, ralando, “concorrendo” com meninas que têm metade da sua idade e um “passaporte árabe”… Tenho muito orgulho delas! Somente elas sabem, na real, o “preço” (altíssimo!) de passar uma vida inteira longe de casa, “encarando o Mundo Árabe”, são guerreiras, são vencedoras, são meninas que mancharam muitos travesseiros de delineador negro em noites solitárias, com o corpo quebrado, sem uma mãezinha por perto. São mulheres que aplaudo de pé!

Eu insisti no Brasil. Eu fiquei. Eu recusei todos os convites. Eu “acreditei na gente” e, sinceramente, somente agora, pela primeira vez, tantos anos depois, todas as “coisas realizáveis” realizadas, tendo vivido coisas que jamais ousei sonhar (como dar aula no Egito, por exemplo) sinto uma ponta de arrependimento por isso… Não me sinto “recompensada” à altura da minha entrega por essa Dança que tanto amamos.

E esse é um texto “urgente”, uma questão que toca a todas nós, envolvidas com Dança do Ventre, dançando, aprendendo, ensinando, contratando bailarinas e, ao mesmo tempo, muito pessoal e, sim, admito, muito, muito magoado… Meu orgulho desaprova a publicação desse texto, mas a verdade que aperta meu coração, mais uma vez, é maior que meu orgulho, é maior que o risco de “magoar possíveis contratantes” e, por mais uma razão, não ser a “bailarina convidada”… Estou na minha casa e esse é o preço mínimo que exijo como “recompensa”: O que quer que aperte meu coração, ainda que ninguém ouse dizer, eu estarei aqui para dizê-lo em bom português, caso contrário, nada terá valido a pena…

CAIRO 2015 – As cabrinhas no telhado

O Egito fala árabe e árabe se escreve de lá pra cá… Tem alguns pensamentos, questões gramaticais e até aspectos culturais que são meio de lá pra cá, mas acredito que eles achem que nós é que estamos muito daqui pra lá. Sei que vejo as coisas meio do contrário e, também, que tem coisas de cabeça pra baixo no Egito. Exemplo: Criação de cabras no telhado.

Claro que não é, bem, um telhado, ou as cabras, facilmente, quebrariam as telhas e despencariam, lá de cima e, também,  não tenho certeza se eram, de fato, cabras. Eram lajes, com cultivo de animais caprícios do Egito.

Eu tenho dificuldade em distinguir algumas coisas: Jair e Luiz, timbres de metais e animais da categoria dos caprícios (a palavra “caprícios” não existia até agora). Confundo todos! “Oi, Luiz!” “Jair!” “Ah!”… “É um sax, né?” “Não, trompete!” “Ah!” e cabra, cervo, cordeiro, bode, carneiro, o pessoal todo do meeeeeeeeeeeeeeee, ou me-e-e-e-e-e-e-e-e-e, ou beeeeeeeeeeee, esses caras… os que berram eu não sei quem é quem.

Eu vivia num apartamento no décimo andar, num prédio chique no Mohandeseen, no Cairo  e, da janela do meu quarto, explorei, anônima, a movimentação nas lajes de toda a vizinhança.

Aos caprícios que vivem nas lajes dos meus vizinhos vou chamar de cabras. Estas eram, à direita, cabras cor de cabra, mesmo, tons de caramelo e nude (porque a cor bege, simplesmente, não existe mais!) cabras nude- caramelo- âmbar. Sobre a casa do vizinho da esquerda, cabras mais macias, com xales em tons de vaca malhada, branco com preto ou ainda, preto com branco.

A laje da casa à minha direita tinha dois setores. Um, das cabras e outro, dos humanos. O período que morei neste apartamento, incluiu os últimos dez dias do Ramadan de 2015 e via, da janela, uma família imensa que se organizava para quebrarem o jejum juntos, numa mesa enorme a céu aberto, cercada de crianças e coberta de comida! Era bem gostoso de ver! A moça com quem eu morava não jejuava e eu, várias vezes, quebrava o jejum sozinha (sim, eu jejuo!), quero dizer, quase sozinha.

Preparava minha comida, colocava em uma bandeja e comia na janela, junto à família das cabras nude-âmbar. Às vezes eu até participava do assunto, conforme eu ia tecendo um roteiro, como uma pessoa que atribui legendas a um filme mudo “De quantos meses você está?” “Seis” “Que maravilha! Benza Deus”… “E o Mohammed? Ligou?” “Ligoumasdeixapraláquemeupaitavindo”… “Do que vocês estavam falando, meninas?” “Nada, papai!” “hihihihi…” “hihihihihi…”.

Passada a refeição, desmontavam tudo e voltavam para o interior da casa, deixando-me a sós com as cabras. Observando o movimento delas, percebi que elas decidem coisas juntas… Todas se movimentam para um determinado ponto, fazem uma roda e confabulam sobre sei-lá-o-que! Comem juntas também e tem uns filhotinhos meio folgados que entram na bacia de comida. Comiam, as cabras e o filhote, dentro da bacia, mesmo.

As cabrinhas da laje à esquerda tinham um “cafofo” e, acredito, uma tratadora mulher, já que esta eu jamais vi tratando das cabras e elas (as cabras) entravam com muita freqüência no tal do cafofo… No princípio, imaginei que fosse para dar telefonemas mas, depois, acabei concluindo que, já que as cabras não comiam do lado de fora (por isso, inventei, também, que era uma tratadora mulher, que não queria se expor na laje, tratando de cabras, o que é possível no Egito), prefeririam comer a dar telefonemas.

Na laje da direita, todos os dias, subia um tratador. Um homem que havia, sempre, acabado de se levantar. O cabelo amassado, rente às costas, amassadas, uma camiseta desbeiçada enfiada às pressas, cós adentro de uma calça de louco. Calças de louco: São aquelas calças sem nenhuma sofisticação, nem zíper ou botões, sempre com um elástico ou cordão e o cara veste (aí é que está!) de um jeito que a costura da bunda não sincroniza com o rego. (Eu não sei como eles conseguem fazer isso!) e o cara parece que foi vestido por uma outra pessoa.

Ele se movimentava com uma vagareza que eu considerava irritante no princípio, depois, fui pegando amor nele. Lento, amassado, com aquela calça, o rego fora do lugar… Sei lá… Uma figura meio inocente, tratando as cabras com tanta delicadeza.

Ele punha a ração. Sentava-se numa velha cadeira rente ao muro. Observava. Depois ia levantando-se. Não, não é que ele se levantava, assim. Ele esticava uma perna, depois a outra, depois dobrava, botava o braço no muro, olhava para os lados, para o chão, para o próprio braço no muro, dizia “Vai, braço!” e o braço apoiava a mão “Vai, mão!” e, flasssssssss (esse é o barulho de um homem grande e lerdo se levantando de uma cadeira meio torta!) coçava alguma coisa e recomeçava.

O mesmo ritual era feito com a água: Serve, senta, observa, levanta… Enquanto cuidava das cabras, acariciava uma e outra, pegava os bebês no colo, dava uma ou outra chicoteada quando saía uma briga, às vezes, tirava leite. Depois descia, preparava um lanche e voltava para seu sofá. Até que alguém gritava seu nome e ele se levantasse, lentamente, para, quarenta minutos depois, estar na laje, com suas cabras.

Cabras brigam muito! Às vezes, não passa de uma discussão, uma outra interfere, chega uma cabrinha-criança, uma dessas coisas tolas que interrompem brigas tolas e, às vezes, chegam aos finalmentes e rolam umas chifradas. Daí, se separam, fofocam, fazem grupinhos, depois, vão voltando a interagir.

Tinha um deles, um bode preto, destoando das cabras-caramelo (bode? Tem bode no Egito? Deve haver um outro nome! Isso me dá um certo ciúmes! O bode não é só nosso?). Havia dias em que ele acordava de ovo virado e passava o dia todo berrando com todo mundo, dando cabeçadas e fazendo climão! Um dia, da minha janela, o vi causando na laje, comecei a ficar irritada com ele, balbuciei “bode feio, besta…” e ele virou-se, olhou na minha direção e deu um berro! Eu, instintivamente, me agachei, rente à parede e, lembrando que estava a uns oito andares acima dele, os imaginei rindo horrores da minha cara! “Pegamos mais um trouxa!”. Levantei-me rapidamente, mas todos disfarçaram e voltaram às suas atividades de cabra.

Teve uma outra que, certo dia, cansada de sua natureza quadrúpede, simplesmente, levantou-se. Do nada. E ficou ali em pé, por um tempo, pensando “Por que não?”. As demais não tiveram reação alguma. Talvez seja este, um hábito, uma excentricidade dela que as cabras concordaram em não alardear. Elegantes, as cabras!

Notei, ainda, que os animais maiores tinham as patas da frente atadas uma à outra… Cabras saltam! imagino que seja este o motivo, pelo qual têm as patas dianteiras atadas, não? Estando as cabras em cima da laje, pensa na merda que daria um “salto capricio” em plena Avenida (estas casas davam de frente à uma Avenida movimentadíssima do Cairo). A cabra cairia sobre alguém que, certamente, morreria, causando um constrangimento enorme a todos, inclusive ao morto, que teria que se explicar “Sabe o que é… eu tava andando na rua e… é que caiu uma cabra na minha cabeça…” e os anjos teriam que conter suas risadinhas angelicais.

As cabrinhas do telhado me fizeram uma companhia preciosa, especialmente, em momentos (que são muitos!) em que não desejo a companhia de nenhum humano ao meu alcance. E, além da amizade das cabrinhas, aquelas lajes cheias de vida, filhotes nascendo, cabras dando leite, homens calmos, mulheres invisíveis e famílias comendo juntas, davam-me a impressão de que as coisas estavam bem no Cairo. Da janela de onde, um dia, observei homens apressados e armados, via a vida berrando, o dia inteiro!

CAIRO 2015: A festa da Fefelech

Talvez, para um não paulista, partes desta história não façam muito sentido, mas vou tentar explicar… na USP (Universidade de São Paulo) tem a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a FFLCH, para os mais íntimos “Fefelech” e para muitas pessoas, tanto de dentro, como fora da FFLCH, isto significa, também um modo de vida.

Para os paulistas, moleza de explicar: é parte da inspiração estética da facção mais colorida e crespa da Vila Madalena: Meninas bonitas, de classe média, misturada a meninas de Periferia, um ou outro estrangeiro, salto e maquiagem quase zero, blusinhas e vestidinhos de alcinha, coisas sem sutiã, bolsinhas de alça fina coladas ao corpo, ou sacolas grandes de tecido, cabelos armados soltos, ou em coques feitos sem espelho, curtinhos, tatuagens, chinelinhos, rasteirinhas…Os rapazes são leves, sorridentes, de bermuda, chinelo, cabelo desgrenhado, camiseta engajada ou a do seu time, alguém sempre tem um violão, alguém sempre tem uma cachaça e alguém sempre tem um baseado.

As festas de FFLCH também têm crianças legais! Crianças que estão soltas dos pais, interagindo, brincando com as pessoas, todo mundo participa, quando você vê, tem uma no seu colo, são bem mais legais do que as crianças das outras festas.Nestas festas, não costuma ter muita comida, também, é goró e assunto. E, como têm assunto esses caras!

Eu fui à muitas festas da FFLCH… Hoje, conhecendo melhor algumas pessoas, ficou um pouco mais legal mas, a princípio, eu demorei muito para ser recebida. Eu sou “muito perua” para o padrão da FFLCH e – aqui vem uma parte chatérrima dessas festas – tem assuntos e posturas “senhas” para participar da coisa toda. São Paulo tem uma característica excêntrica, que amigos de outros Estados apontaram. Aqui, toda conversa se inicia com “Você faz o que?” ou, ainda mais direto “Trabalha com o que?” e a minha resposta (“Dança do Ventre”) já gerou distintas reações: Ah, que legal! (levanta e vaza). Ah! (levanta e vaza) Ah, é? (balança a cabeça, me mede, levanta e vaza). Ou ainda, levanta e vai comentar na rodinha ao lado que tem um ET na festa. Já me perguntaram, assim, diretamente “Você faz o que na US?” e eu “Nada… não faço nada na USP, não…” levanto e vazo.

É bem duro ter que “provar minha capacidade de reflexão e discussão, apesar de ser magra, peituda, de unhas enormes e salto alto”. Uma vez, uma moça, numa festa dessas me disse, assim, achando que dizia algo que, realmente, deveria ser dito “Você há de convir comigo que sua aparência induz qualquer um a pensar que você é meio burrinha, meio fútil, né?”… Sim, ela disse. Era uma mulher bem feia, um “expoente do movimento chinelo-e-meia-e-axila-cabeluda” e ela disse com uma certa pena de mim, como se fosse um elogio, do tipo, “Você até parece razoável!” e eu respondi com um sorriso de novela “Não se preocupe, meu bem, eu me explico muito bem em cinco idiomas” (e imaginei, ao meu lado, uma bicha bem magrinha, de cabelo de palito de fósforo, dando um beijinho no ombro, com olhar de serpente).

Fui a uma “Festa da Fefelesh” no Cairo! Vivi por uma semana com uma moça que trabalha com Direitos Humanos, cabelo curto, sem lenço, copo na mão e tem vários amigos e amigas como ela, de Esquerda, dentro de Universidades, estudando Humanas e, claro, falando, falando, falando, tomando e fumando, fumando, fumando. Um modo de vida bem legal, pra mim, comparado restante do Menu, sinceramente.

Chegando à Festa (que era na putaqueopariu, claro) minha colega enfiou-se festa adentro para abraçar pessoas e não me apresentou a ninguém. Eu estava de preto, costas transparentes de renda, com um lenço espanhol nos ombros, maquiadíssima, de cabelo feito, jóias, perfume e, claro, todos os olhos sobre mim. (E isso não tem glamour nenhum, estava inadequada e sem jeito).

Me sentei numa almofada, com meus cigarros e fiquei olhando as pessoas. Somente, neste momento, me dei conta que estava numa festa da Fefelech! Eles estavam todos lá: o cara do violão, a moça doida gritando “Vamolá! Vamolá!”, crianças legais soltas, um fulano bolando um baseado e as moças soltinhas. Tinha uma egípcia lésbica negra! De cabelão black, vestida e sentada meio Cássia Eller, com um puta baseadão na boca, olhando a mulherada. Eu, inclusive. Ela tinha uma tatuagem no ombro, mas achei melhor não ficar encarando.

Chegou um tipo tão animado, com um corte de cabelo de Cascão e uma camisa que, olhando de relance, achei que era do Corinthians. O moço chegou a ver minha cara de espanto e, só de raiva, me olhou com uma cara de espanto maior ainda! Não, não era uma camisa do Corinthians.

Tinha um Orientador da FFLCH. Os orientadores são as figuras mais VIP dentro da FFLCH! A presença de um orientador (ele tem a mesma estética, uns 10 ou 15 anos mais) é percebida, imediatamente, pela reação das pessoas, Um orientador pode agregar muito valor a uma festa.

A música, nas festas da FFLCH começam em altíssimo nível! Toca aquela do Chico, toca Milton Nascimento, Beto Guedes… Então, ainda que eu fique completamente só, quando alguém liga o som, o Beto Guedes começa a cantar pra mim (eu finjo que é só pra mim!) e minha solidão acaba. No Cairo, o Ahmed Addawia começou a entoar o Mawal de Bint Il Sultan, alto, bem alto, só pra mim e, de uma hora pra outra, estava com a melhor companhia que poderia ter no Cairo, deixei meu pescoço cair para trás, até apoiar-se em uma almofada, fechei os olhos e comecei a gostar de estar lá.

A festa foram várias festas. Talvez, até agora, ainda esteja saindo e entrando gente daquela casa! Foram uns 4 grupos distintos, noite adentro e uns bestas, feito eu, que dependiam de carona e ficaram a noite toda. Chegou um grupo de meninas de saias mais curtas e cabelos mais compridos, dentre elas, uma de saia branca transparente, com uma calcinha minúscula, enfiadinha e eu fiquei mais tranquila. Moças de calcinhas enfiadinhas dão algum sentido à minha presença. Eu não vou explicar isso.

A moça da calcinha enfiada era a mais próxima que havia de uma “Dançarina” e dançou horrores! Eu, sentada, passei um longo tempo observando os egípcios dançarem e, depois, dançando entre eles e descobri várias coisas sobre nós…

Uma moça desajeitada egípcia dançando dança do ventre é tão desajeitado como qualquer gringa, só que de um outro desajeitamento. É um desengonço árabe, mas é desengonço igual… Não é genético porra nenhuma, como eu sempre soube. Os meninos dançam melhor que as meninas porque tem tanto orgulho de sua condição de homem que são mais alongados, mais livres, mais soltos. Eu não sei dançar música árabe, dançando, simplesmente. É um sofrimento.. Fico fingindo sei lá o que pra não dar pala. Não gosto de dançar em situações assim… Não estava me sentindo à vontade nem sentada, em silêncio, muito menos para dançar. Mas (vou confessar!) meu lado mais Malévola dizia lá de dentro “Mostraí como faz essa porra, porra!”. Mas, eu não dei a mínima pra essa bobagem. Observar valia mais a pena.

Apesar da música começar, sempre em alto nível, nestas festas, aqui no Brasil, tudo acaba em axé, funk, pagode e tem dois tipos de reação: Aqueles que falam “ah… porra!..”, mas, sem ser muito a sério (De-mo-cra-ci-a, por favor!) e o outro grupo, chefiado pela moça do “Vamolá!” que desce até o chão… Alguns se controlam mas, chega uma hora, garrafas quase vazias que toca “aquela do É o Tcham” e tooooooodo mundo vai.

No Cairo, é a hora do shaabi, das breguices do passado, do Chik chak chok, do Haram tahebak e, claro, nem eu resisto. Uma delícia! Depois, veio uma sessão black, mas como vagou um sofá, não resisti e me joguei num canto fofo, entre almofadas.

Havia um casal bem bizarro: Uma moça com pinta de lésbica, cabelo moicano, camisa azul-Roberto-Carlos, calça jeans meio grunge e tênis (um horror, diga-se de passagem) e um sujeito de cabeça raspada, vestido meio igual a ela e ambos, bem doidões. Eles chegaram quietíssimos e, acho que, enquanto tentava entender alguma coisa que se dizia, eles foram ali e tomaram um negócio diferentão…

Os dois começaram a fazer danças bem pra lá de ousadas, até que se jogaram no sofá ao meu lado. Quando me dei conta (estava distraída vendo uma moça de vestidinho branco – de ir ao Boi no Morro do Querosene – cantando, lindamente, sei lá o que em árabe) percebi que ambos olhavam para mim e falavam sobre mim.

Outra coisa que descobri nessa festa é que o pessoal da USP do Egito são tão, mas tão egípcios que não têm nenhuma dúvida com o fato de eu não ser. Falam de mim em árabe na minha frente… É bem engraçado “Quem é essa aí? … Sei lá?… Não tenho a menor idéia… Amiga de quem?.. Nunca vi…” e eu, entendendo tudo. Acho meio mal educado isso, sinceramente… Não custava me perguntar, ao menos, se eu falava árabe, antes de começar a discutir minha presença em baixo do meu nariz. O casal: “Linda, né? É… Gostosa… Quem é… sei lá… você gostou? (ele perguntava pra ela) Sim!” bla bla bla… (e, eu pensando, “ai, carai”…). Até que o moço careca da namorada meio lésbica vira pra mim:

– Where are you from? – Brasil! – New York? HEEEEEY GUUUYS!!! WE HAVE A GIRL FROM NEW YORK HERE! (e eu, pensei alto “ai, carai…”). Vou seguir em português…

– Você é ninfomaníaca? (sim… ele perguntou isso com um sorriso bêbado, meio torto)

– Não… eu não… Na verdade, eu sou uma pessoa bem sem graça… Pareço especial, diferente, mas… na verdade… não. (dizia, afundada no sofá, com meu cigarro na mão).

Ele continuou com um papo que, a música alta e meu desinteresse não me deixaram ouvir bem, chamou a namorada, que veio sorrindo, com aquela cara de doida, eu disse “Ai, carai… Vou pegar alguma coisa pra beber” e fugi para a cozinha. Não sei há quanto tempo eu estava lá e queria muito ir pra casa… Mas… estávamos de carona com o amigo do amigo que descia até o chão…

Na cozinha, achei um copo, botei um suco dentro (não estava bebendo nessa época, era Ramadan, prefiro evitar) me joguei numa cadeira e fiquei por um momento, pensando no porque de tudo isso… Até que fui interrompida por uma bela moça do cara de Nefretite (disse a ela que iria conta que conheci uma descendente de Nefretite, que seria mais chique, e ela adorou!). A moça me fez uma pergunta qualquer sobre a cerveja gelada, que eu não soube responder, pegou uma e puxou um papo na cozinha (graças a Deus!).

Por alguma razão mágica (que considero, às vezes sorte, às vezes azar) as pessoas olham pra minha cara e saem contando tudo. Eu ouço histórias tão pessoais, às vezes, pesadas, de pessoas que mal conheço, com uma certa frequência.

Começamos uma conversa sobre a condição da mulher no mundo, no Brasil, no Egito, contei algumas histórias, contei que havia nazistas no Brasil, ao que ela lamentou com muita sinceridade “Poxa… nazistas no Brasil, exatamente, é uma coisa muito séria e decepcionante… um país tão mestiço, tão tolerante!” e eu fiquei bem embaraçada de ouvir isso dela.

Ela me contou que duas moças foram assassinadas no Cairo por reagir a assédio sexual. Uma, atropelada e a outra, tomou um tiro. Nada disso saiu na Imprensa Formal, são coisas que os egípcios consideram muito difíceis de discutir, também, assunto “interno” e não discutem. Os assassinos foram presos, pegaram penas brandas por seus crimes e estas meninas da festa, juntamente a outras e a rapazes também, estão lutando para reverter estes e outros casos, envolvidos com ONG´s, etc. Eles têm muitos amigos presos também e conexões para saber de seus paradeiros, fazer visitas… Em alguns momentos, sinto-me dentro de um Filme brasileiro de 1968.

Ela falou um pouco de sua infância, em um Povoado distante do Cairo, tradicionalíssimo e me contou que é uma das únicas meninas que não foi circuncidada, entre suas primas e amigas de infância, porque sua mãe mentiu. Quando começaram a perguntar se ela já havia “feito a menina” ela, simplesmente, disse “Sim!” e acabou o assunto. Ela me conta, também, que muitas das meninas que estão nesta festa são circuncidadas e que ninguém fala sobre isso… Simplesmente, não falam. Não sabem, ao certo uma sobre a outra e não tem interesse em saber.

Ela me conta ainda que, quando “desbundou” (tirou o lenço, largou a religião, foi morar sozinha, etc) decidiu se “auto deflorar” porque não queria o peso da virgindade em seu corpo e não queria que isso fosse um critério para um homem escolhê-la. Pode parecer bem estranho, mas a compreendi e, sinceramente, fiquei orgulhosa dela! É uma atitude de uma coragem enorme e caráter, profundamente, revolucionário, para uma menina egípcia de vinte e poucos anos.

Quando voltei pra sala e vi essas moças sem lenço, sem sutiã, sorrindo, de vestidinhos, fui invadida por dois sentimentos antagônicos, de pena e orgulho, de alegria e tristeza, de privilégio de estar lá e testemunhar sua sobrevivência e fiz muita força para não chorar.

Eu não consigo estar só lá ou só aqui… Carrego o Brasil comigo pro Egito, trago o Egito na mala, amando aos dois com amores distintos. protegida pelas canções que costuram toda a minha vida e me sentido próxima de todas as mulheres do mundo, desejando muito poder cuidar de cada uma delas.