Envelhecer tem, sim, lá suas vantagens. Por exemplo: Saber a diferença entre drama e tragédia e saber o que fazer com seu cabelo. Dois problemas distintos, de berço, sanados! De desvantagens, todas as que já sabemos e uma que os “meus velhos” esqueceram de comentar: Os outros se vão e você vai ficando…
Somos pouca coisa a mais do que os outros sabem de nós, uma outra parte, é o que construímos em nós, na presença destes outros. A presença dos seus em sua vida é a garantia que você tem de não se esquecer quem você é. Se você fingir ser outra pessoa ou, simplesmente, esquecer-se, tem um cara lá que vai te olhar um olhar “Te conheço!” que te faz encontrar, imediatamente, o caminho que leva de volta a você.
As pessoas que você ama, suas testemunhas, nesse caminho lado a lado, vão criando raízes que se entrelaçam nas suas e, caso você se perca, tem como voltar, somente olhando pro lado.
Tem uma parte da sua história que é tão entrelaçada na raiz ao lado, que você precisa do outro pra te apontar o que é você e o que é ele. Os nós destas raízes vizinhas fortalecem as suas até que um dia, um ruído seco corta aquele negócio lá longe, lá na base, e você percebe que tem um ramo a menos te prendendo à vida.
Um dia, o seu telefone toca e alguém próximo de você, alguém que não te liga. – Aliás, atualmente, ninguém liga pra ninguém… Em quase que dois significados. – Alguém que, não necessariamente liga pra você, te liga, falando com uma voz de quem, realmente, liga muito pra você “Onde você está? Você já está sabendo?” e, sim, você, do outro lado, já está sabendo.
Nas primeiras duas ou três vezes, dá aquela “tonteira”, um mal-estar, uma sensação de que algo ruim pode ter acontecido. Chega um momento em que não, você não tem sensação alguma, você sabe, exatamente, o que aconteceu e prende o ar para ouvir “Quem foi?”.
Dia desses, o Thomas que tava por aí, foi embora, não tá mais… Ele andava bem doente, sofrendo muito nos últimos meses e minha primeira sensação, ao ouvir seu nome, foi de alívio, depois, revendo minhas memórias, um pouco de riso, um pouco de culpa (podia ter feito sei lá o que mais…), aquela saudade doída, revirando lá dentro, como um redemoinho, brotando, discreto, lá no fundo da alma, uma onda gigante de lágrimas, o peso do “nunca mais” e um pouco mais de solidão. Uma testemunha a menos, uma raiz a menos e eu, sinto-me ficando um pouco mais frouxa no Mundo.
A luz, “aquela luz”, sabe? Interior? Quando a gente se apaixona, fica mais colorida, e todo mundo repara, sabe? Eu não acho que seja uma luz, acho que é como uma manta de luzes de muitos tamanhos, intensidades e cores diferentes. Quando alguém que você ama se afasta, apaga uma, depois outra, depois outra… A gente vai ficando na penumbra, até que algumas delas se reacendem, ou ainda, brotam novas luzinhas, mas, as dos outros, os que vão embora, estas não. Nunca mais.
O Thomas, certa vez, me disse: “Sabe… eu não tenho porra nenhuma do que as pessoas dizem que a gente precisa ter pra ser feliz… Eu não tenho carro, não tenho casa, não tenho dinheiro guardado, nunca botei uma gravata e não sinto a menor falta de nada disso!” e era, absolutamente, verdade. Ele viveu mais de 50 anos sem carro, nem gravata, cercado de montanhas de discos e livros e pessoas, de todas as cores e formas, rindo à toa, contando mil histórias e fazendo música.
E, olhando assim pro Thomas, tão vivo, vejo o outro lado da perda dos outros, que foi o privilégio de ter estado em sua presença! Estes são aqueles amigos que sabiam das coisas. De alguma maneira, sabiam o que todos dizemos saber, que a vida é urgente e preciosa, que é melhor deixar pra lá, que é mais gostoso com bom humor… Eles passam na vida da gente, às gargalhadas, e se vão, cedo, sem débitos.
Ele era “Beatlemaníaco” e eu, o extremo oposto… Em uma das cem vezes que ele me obrigou a “ouvir Beatles para mudar de idéia”, eu disse “Thomas! Desiste! Eu detesto essa porra!”, ele deu uma gargalhada, me deu um agarrão, falou “Você é uma figura! Eu adoro você” e não tirou o som. Nem reparei! Reparei mais no fato de ele me adorar, detestando a coisa que ele mais amava.
Era assim que o Thomas levava a vida, fazendo o que queria, dando gargalhadas e amando as pessoas. Do jeitinho que a gente sabe que deveria viver, até que um dia, fique de nós o som da nossa risada, das canções que foram trilha sonora das histórias que contamos juntos, o ruído dos sapatos caminhando ao lado e as profundas marcas no nosso caminho, de cada nozinho, cada raminho daquela raiz na qual se apoiou a sua, por tantos anos.