Talvez, para um não paulista, partes desta história não façam muito sentido, mas vou tentar explicar… na USP (Universidade de São Paulo) tem a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a FFLCH, para os mais íntimos “Fefelech” e para muitas pessoas, tanto de dentro, como fora da FFLCH, isto significa, também um modo de vida.
Para os paulistas, moleza de explicar: é parte da inspiração estética da facção mais colorida e crespa da Vila Madalena: Meninas bonitas, de classe média, misturada a meninas de Periferia, um ou outro estrangeiro, salto e maquiagem quase zero, blusinhas e vestidinhos de alcinha, coisas sem sutiã, bolsinhas de alça fina coladas ao corpo, ou sacolas grandes de tecido, cabelos armados soltos, ou em coques feitos sem espelho, curtinhos, tatuagens, chinelinhos, rasteirinhas…Os rapazes são leves, sorridentes, de bermuda, chinelo, cabelo desgrenhado, camiseta engajada ou a do seu time, alguém sempre tem um violão, alguém sempre tem uma cachaça e alguém sempre tem um baseado.
As festas de FFLCH também têm crianças legais! Crianças que estão soltas dos pais, interagindo, brincando com as pessoas, todo mundo participa, quando você vê, tem uma no seu colo, são bem mais legais do que as crianças das outras festas.Nestas festas, não costuma ter muita comida, também, é goró e assunto. E, como têm assunto esses caras!
Eu fui à muitas festas da FFLCH… Hoje, conhecendo melhor algumas pessoas, ficou um pouco mais legal mas, a princípio, eu demorei muito para ser recebida. Eu sou “muito perua” para o padrão da FFLCH e – aqui vem uma parte chatérrima dessas festas – tem assuntos e posturas “senhas” para participar da coisa toda. São Paulo tem uma característica excêntrica, que amigos de outros Estados apontaram. Aqui, toda conversa se inicia com “Você faz o que?” ou, ainda mais direto “Trabalha com o que?” e a minha resposta (“Dança do Ventre”) já gerou distintas reações: Ah, que legal! (levanta e vaza). Ah! (levanta e vaza) Ah, é? (balança a cabeça, me mede, levanta e vaza). Ou ainda, levanta e vai comentar na rodinha ao lado que tem um ET na festa. Já me perguntaram, assim, diretamente “Você faz o que na US?” e eu “Nada… não faço nada na USP, não…” levanto e vazo.
É bem duro ter que “provar minha capacidade de reflexão e discussão, apesar de ser magra, peituda, de unhas enormes e salto alto”. Uma vez, uma moça, numa festa dessas me disse, assim, achando que dizia algo que, realmente, deveria ser dito “Você há de convir comigo que sua aparência induz qualquer um a pensar que você é meio burrinha, meio fútil, né?”… Sim, ela disse. Era uma mulher bem feia, um “expoente do movimento chinelo-e-meia-e-axila-cabeluda” e ela disse com uma certa pena de mim, como se fosse um elogio, do tipo, “Você até parece razoável!” e eu respondi com um sorriso de novela “Não se preocupe, meu bem, eu me explico muito bem em cinco idiomas” (e imaginei, ao meu lado, uma bicha bem magrinha, de cabelo de palito de fósforo, dando um beijinho no ombro, com olhar de serpente).
Fui a uma “Festa da Fefelesh” no Cairo! Vivi por uma semana com uma moça que trabalha com Direitos Humanos, cabelo curto, sem lenço, copo na mão e tem vários amigos e amigas como ela, de Esquerda, dentro de Universidades, estudando Humanas e, claro, falando, falando, falando, tomando e fumando, fumando, fumando. Um modo de vida bem legal, pra mim, comparado restante do Menu, sinceramente.
Chegando à Festa (que era na putaqueopariu, claro) minha colega enfiou-se festa adentro para abraçar pessoas e não me apresentou a ninguém. Eu estava de preto, costas transparentes de renda, com um lenço espanhol nos ombros, maquiadíssima, de cabelo feito, jóias, perfume e, claro, todos os olhos sobre mim. (E isso não tem glamour nenhum, estava inadequada e sem jeito).
Me sentei numa almofada, com meus cigarros e fiquei olhando as pessoas. Somente, neste momento, me dei conta que estava numa festa da Fefelech! Eles estavam todos lá: o cara do violão, a moça doida gritando “Vamolá! Vamolá!”, crianças legais soltas, um fulano bolando um baseado e as moças soltinhas. Tinha uma egípcia lésbica negra! De cabelão black, vestida e sentada meio Cássia Eller, com um puta baseadão na boca, olhando a mulherada. Eu, inclusive. Ela tinha uma tatuagem no ombro, mas achei melhor não ficar encarando.
Chegou um tipo tão animado, com um corte de cabelo de Cascão e uma camisa que, olhando de relance, achei que era do Corinthians. O moço chegou a ver minha cara de espanto e, só de raiva, me olhou com uma cara de espanto maior ainda! Não, não era uma camisa do Corinthians.
Tinha um Orientador da FFLCH. Os orientadores são as figuras mais VIP dentro da FFLCH! A presença de um orientador (ele tem a mesma estética, uns 10 ou 15 anos mais) é percebida, imediatamente, pela reação das pessoas, Um orientador pode agregar muito valor a uma festa.
A música, nas festas da FFLCH começam em altíssimo nível! Toca aquela do Chico, toca Milton Nascimento, Beto Guedes… Então, ainda que eu fique completamente só, quando alguém liga o som, o Beto Guedes começa a cantar pra mim (eu finjo que é só pra mim!) e minha solidão acaba. No Cairo, o Ahmed Addawia começou a entoar o Mawal de Bint Il Sultan, alto, bem alto, só pra mim e, de uma hora pra outra, estava com a melhor companhia que poderia ter no Cairo, deixei meu pescoço cair para trás, até apoiar-se em uma almofada, fechei os olhos e comecei a gostar de estar lá.
A festa foram várias festas. Talvez, até agora, ainda esteja saindo e entrando gente daquela casa! Foram uns 4 grupos distintos, noite adentro e uns bestas, feito eu, que dependiam de carona e ficaram a noite toda. Chegou um grupo de meninas de saias mais curtas e cabelos mais compridos, dentre elas, uma de saia branca transparente, com uma calcinha minúscula, enfiadinha e eu fiquei mais tranquila. Moças de calcinhas enfiadinhas dão algum sentido à minha presença. Eu não vou explicar isso.
A moça da calcinha enfiada era a mais próxima que havia de uma “Dançarina” e dançou horrores! Eu, sentada, passei um longo tempo observando os egípcios dançarem e, depois, dançando entre eles e descobri várias coisas sobre nós…
Uma moça desajeitada egípcia dançando dança do ventre é tão desajeitado como qualquer gringa, só que de um outro desajeitamento. É um desengonço árabe, mas é desengonço igual… Não é genético porra nenhuma, como eu sempre soube. Os meninos dançam melhor que as meninas porque tem tanto orgulho de sua condição de homem que são mais alongados, mais livres, mais soltos. Eu não sei dançar música árabe, dançando, simplesmente. É um sofrimento.. Fico fingindo sei lá o que pra não dar pala. Não gosto de dançar em situações assim… Não estava me sentindo à vontade nem sentada, em silêncio, muito menos para dançar. Mas (vou confessar!) meu lado mais Malévola dizia lá de dentro “Mostraí como faz essa porra, porra!”. Mas, eu não dei a mínima pra essa bobagem. Observar valia mais a pena.
Apesar da música começar, sempre em alto nível, nestas festas, aqui no Brasil, tudo acaba em axé, funk, pagode e tem dois tipos de reação: Aqueles que falam “ah… porra!..”, mas, sem ser muito a sério (De-mo-cra-ci-a, por favor!) e o outro grupo, chefiado pela moça do “Vamolá!” que desce até o chão… Alguns se controlam mas, chega uma hora, garrafas quase vazias que toca “aquela do É o Tcham” e tooooooodo mundo vai.
No Cairo, é a hora do shaabi, das breguices do passado, do Chik chak chok, do Haram tahebak e, claro, nem eu resisto. Uma delícia! Depois, veio uma sessão black, mas como vagou um sofá, não resisti e me joguei num canto fofo, entre almofadas.
Havia um casal bem bizarro: Uma moça com pinta de lésbica, cabelo moicano, camisa azul-Roberto-Carlos, calça jeans meio grunge e tênis (um horror, diga-se de passagem) e um sujeito de cabeça raspada, vestido meio igual a ela e ambos, bem doidões. Eles chegaram quietíssimos e, acho que, enquanto tentava entender alguma coisa que se dizia, eles foram ali e tomaram um negócio diferentão…
Os dois começaram a fazer danças bem pra lá de ousadas, até que se jogaram no sofá ao meu lado. Quando me dei conta (estava distraída vendo uma moça de vestidinho branco – de ir ao Boi no Morro do Querosene – cantando, lindamente, sei lá o que em árabe) percebi que ambos olhavam para mim e falavam sobre mim.
Outra coisa que descobri nessa festa é que o pessoal da USP do Egito são tão, mas tão egípcios que não têm nenhuma dúvida com o fato de eu não ser. Falam de mim em árabe na minha frente… É bem engraçado “Quem é essa aí? … Sei lá?… Não tenho a menor idéia… Amiga de quem?.. Nunca vi…” e eu, entendendo tudo. Acho meio mal educado isso, sinceramente… Não custava me perguntar, ao menos, se eu falava árabe, antes de começar a discutir minha presença em baixo do meu nariz. O casal: “Linda, né? É… Gostosa… Quem é… sei lá… você gostou? (ele perguntava pra ela) Sim!” bla bla bla… (e, eu pensando, “ai, carai”…). Até que o moço careca da namorada meio lésbica vira pra mim:
– Where are you from? – Brasil! – New York? HEEEEEY GUUUYS!!! WE HAVE A GIRL FROM NEW YORK HERE! (e eu, pensei alto “ai, carai…”). Vou seguir em português…
– Você é ninfomaníaca? (sim… ele perguntou isso com um sorriso bêbado, meio torto)
– Não… eu não… Na verdade, eu sou uma pessoa bem sem graça… Pareço especial, diferente, mas… na verdade… não. (dizia, afundada no sofá, com meu cigarro na mão).
Ele continuou com um papo que, a música alta e meu desinteresse não me deixaram ouvir bem, chamou a namorada, que veio sorrindo, com aquela cara de doida, eu disse “Ai, carai… Vou pegar alguma coisa pra beber” e fugi para a cozinha. Não sei há quanto tempo eu estava lá e queria muito ir pra casa… Mas… estávamos de carona com o amigo do amigo que descia até o chão…
Na cozinha, achei um copo, botei um suco dentro (não estava bebendo nessa época, era Ramadan, prefiro evitar) me joguei numa cadeira e fiquei por um momento, pensando no porque de tudo isso… Até que fui interrompida por uma bela moça do cara de Nefretite (disse a ela que iria conta que conheci uma descendente de Nefretite, que seria mais chique, e ela adorou!). A moça me fez uma pergunta qualquer sobre a cerveja gelada, que eu não soube responder, pegou uma e puxou um papo na cozinha (graças a Deus!).
Por alguma razão mágica (que considero, às vezes sorte, às vezes azar) as pessoas olham pra minha cara e saem contando tudo. Eu ouço histórias tão pessoais, às vezes, pesadas, de pessoas que mal conheço, com uma certa frequência.
Começamos uma conversa sobre a condição da mulher no mundo, no Brasil, no Egito, contei algumas histórias, contei que havia nazistas no Brasil, ao que ela lamentou com muita sinceridade “Poxa… nazistas no Brasil, exatamente, é uma coisa muito séria e decepcionante… um país tão mestiço, tão tolerante!” e eu fiquei bem embaraçada de ouvir isso dela.
Ela me contou que duas moças foram assassinadas no Cairo por reagir a assédio sexual. Uma, atropelada e a outra, tomou um tiro. Nada disso saiu na Imprensa Formal, são coisas que os egípcios consideram muito difíceis de discutir, também, assunto “interno” e não discutem. Os assassinos foram presos, pegaram penas brandas por seus crimes e estas meninas da festa, juntamente a outras e a rapazes também, estão lutando para reverter estes e outros casos, envolvidos com ONG´s, etc. Eles têm muitos amigos presos também e conexões para saber de seus paradeiros, fazer visitas… Em alguns momentos, sinto-me dentro de um Filme brasileiro de 1968.
Ela falou um pouco de sua infância, em um Povoado distante do Cairo, tradicionalíssimo e me contou que é uma das únicas meninas que não foi circuncidada, entre suas primas e amigas de infância, porque sua mãe mentiu. Quando começaram a perguntar se ela já havia “feito a menina” ela, simplesmente, disse “Sim!” e acabou o assunto. Ela me conta, também, que muitas das meninas que estão nesta festa são circuncidadas e que ninguém fala sobre isso… Simplesmente, não falam. Não sabem, ao certo uma sobre a outra e não tem interesse em saber.
Ela me conta ainda que, quando “desbundou” (tirou o lenço, largou a religião, foi morar sozinha, etc) decidiu se “auto deflorar” porque não queria o peso da virgindade em seu corpo e não queria que isso fosse um critério para um homem escolhê-la. Pode parecer bem estranho, mas a compreendi e, sinceramente, fiquei orgulhosa dela! É uma atitude de uma coragem enorme e caráter, profundamente, revolucionário, para uma menina egípcia de vinte e poucos anos.
Quando voltei pra sala e vi essas moças sem lenço, sem sutiã, sorrindo, de vestidinhos, fui invadida por dois sentimentos antagônicos, de pena e orgulho, de alegria e tristeza, de privilégio de estar lá e testemunhar sua sobrevivência e fiz muita força para não chorar.
Eu não consigo estar só lá ou só aqui… Carrego o Brasil comigo pro Egito, trago o Egito na mala, amando aos dois com amores distintos. protegida pelas canções que costuram toda a minha vida e me sentido próxima de todas as mulheres do mundo, desejando muito poder cuidar de cada uma delas.