Aula 1 de “O que é ser Artista” por Sérgio Ricardo e Caetano Veloso:
O ano era 1967 e o Contexto Político, aquele que todo mundo (exceto os oligofrênicos de extrema direita) sabe: Regime Militar, porradaria, todo mundo “mãopacabeça”, nenhuma Instituição ou forma de poder poderia ser contestada e, enquanto isso, na TV Record, rolava a terceira edição do “Festival da Canção”. Lá, fechados no Teatro, sob olhares atentos de milhares de telespectadores (a transmissão era feita ao vivo, para todo o Brasil) o Festival era uma espécie de “Oásis”, onde, sim, a contestação era permitida em forma de vaia, de berro, de música e a Censura (sempre burra, ou teria escolhido outro trabalho pra fazer…) simplesmente, não percebia nada…
Neste contexto, ainda, aconteceu uma coisa de uma singeleza ímpar: Uma passeata “contra a guitarra elétrica”. Bom… o que poderiam fazer os Militares contra isso? Nada… Mas era uma galera na rua que se imaginava “lutando contra o Imperialismo Ianque” representado, naquele momento, pela entrada da guitarra elétrica na música brasileira… Lá estavam, dos que me lembro melhor, a Elis Regina e o Gilberto Gil que, 50 anos depois diz que esteve lá, somente, porque a Elis lhe havia pedido. 400 pessoas na rua, nenhuma prisão…
O Sérgio Ricardo havia passado para a última fase a contra-gosto do público, sob vaias ensurdecedoras, mas passou. Era uma música meio “cabeluda”, intensa, agressiva, que começava com um berro (sim! um berro). “Beto bom de bola”, depois, apelidada de “Beto bom de vaia”.
No momento de entrar no Palco, o apresentador do programa tentou dar uma “amaciada” no público, quase que pedindo a este que desse ao Sérgio Ricardo a “chance de ser ouvido”. Entra o Sérgio Ricardo, com sua banda, apavorados, olhos arregalados para o púbico que vaiava sem cessar, a plenos pulmões, quase que impossibilitando os que não vaiavam, de ouvir a tal da canção… O Sérgio Ricardo tentou negociar “Um minuto… por favor… aqui só tem pessoas inteligentes…” Vaia, vaia, vaia… tentou apelar “Não canto de baixo de vaia!” (disse ao Maestro à sua esquerda). Vaia, vaia, vaia… Ele começou a cantar. Deu seu berro “Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah” somando seu berro ao “Uuuuuuuuuuuuuuuuuuu” da platéia… No meio da música, ali mesmo, ao microfone, disse ao maestro “Não consigo nem ouvir o tom!” e, segundos depois, levantou-se. Bradou “Vocês ganharam! Vocês ganharam!” arrebentou seu violão e o atirou à platéia, sendo, assim, eliminado do Festival e, claro, entrando pra História da Música Popular Brasileira.
Minutos depois, lá vem Caetano, com guitarras elétricas, baixo, teclado, muito volume e distorção, trazendo sua “Alegria Alegria” com um arranjo totalmente “Imperialista” (favor considerar as aspas) e, dá-lhe vaia “Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu….”. Caetano olhava para o público, sorria, uns poucos aplaudiam e ele não disse nada, só olhou e sorriu. Olhou com sinceridade, sorriu, sincero, também e começou a cantar… “Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento…” e a letra citava até a Coca Cola, até hoje, considerada um “demônio Imperialista” por outro grupo de oligofrênicos, nesse caso, de esquerda e lentamente, foi acontecendo um milagre: As vaias foram diminuindo, os aplausos, crescendo e no final da canção “Eu vou! Por que não? Por que não? Por que não?” E as pessoas estavam de pé, aplaudindo e cantando junto dele, aos berros “Por que não?”.
O Caetano tinha 23 anos e, mesmo assim, tão menino, pode olhar pra frente com aquele olhar dele, de verdade, aquele sorriso largo e dizer a si mesmo “Olha que coisa mais linda, isso aqui! Aqui se pode vaiar… a mim se pode vaiar!” e, imagino eu, “conhecendo o Caetano como conhecemos” que também pode ter havido da parte dele um sentimento de “Eles não entenderam nada… ainda… mas EU entendi…”.
O “Chilique” é uma coisa que a gente faz, exclusivamente, quando “acredita na vaia”, quando traz pro palco uma coisa que é “pessoal demais”, que é pra nós mesmos… Porque a arte feita pro outro, inclusive “pro outro vaiar” é uma forma de arte na qual a vaia, simplesmente, não penetra, pelo menos, não a ponto de “não se ouvir a própria voz”.
Não sei que fim levou o Sérgio Ricardo… O Caetano, a gente sabe! O Caetano taí! Com seu sorriso, seu olhar, sua verdade, com “Alegria, Alegria” e guitarra elétrica. Sendo vaiado (e muito!) por muitos, mas tá aí, há mais de 50 anos. Por que não?
E vou citar, de novo, meu mantra favorito: “Se enxergo longe é porque me apoio nos ombros de gigantes” (I. Newton).
Obrigada, Caetano Veloso! Muito obrigada!