CAIRO 2015 – As cabrinhas no telhado

O Egito fala árabe e árabe se escreve de lá pra cá… Tem alguns pensamentos, questões gramaticais e até aspectos culturais que são meio de lá pra cá, mas acredito que eles achem que nós é que estamos muito daqui pra lá. Sei que vejo as coisas meio do contrário e, também, que tem coisas de cabeça pra baixo no Egito. Exemplo: Criação de cabras no telhado.

Claro que não é, bem, um telhado, ou as cabras, facilmente, quebrariam as telhas e despencariam, lá de cima e, também,  não tenho certeza se eram, de fato, cabras. Eram lajes, com cultivo de animais caprícios do Egito.

Eu tenho dificuldade em distinguir algumas coisas: Jair e Luiz, timbres de metais e animais da categoria dos caprícios (a palavra “caprícios” não existia até agora). Confundo todos! “Oi, Luiz!” “Jair!” “Ah!”… “É um sax, né?” “Não, trompete!” “Ah!” e cabra, cervo, cordeiro, bode, carneiro, o pessoal todo do meeeeeeeeeeeeeeee, ou me-e-e-e-e-e-e-e-e-e, ou beeeeeeeeeeee, esses caras… os que berram eu não sei quem é quem.

Eu vivia num apartamento no décimo andar, num prédio chique no Mohandeseen, no Cairo  e, da janela do meu quarto, explorei, anônima, a movimentação nas lajes de toda a vizinhança.

Aos caprícios que vivem nas lajes dos meus vizinhos vou chamar de cabras. Estas eram, à direita, cabras cor de cabra, mesmo, tons de caramelo e nude (porque a cor bege, simplesmente, não existe mais!) cabras nude- caramelo- âmbar. Sobre a casa do vizinho da esquerda, cabras mais macias, com xales em tons de vaca malhada, branco com preto ou ainda, preto com branco.

A laje da casa à minha direita tinha dois setores. Um, das cabras e outro, dos humanos. O período que morei neste apartamento, incluiu os últimos dez dias do Ramadan de 2015 e via, da janela, uma família imensa que se organizava para quebrarem o jejum juntos, numa mesa enorme a céu aberto, cercada de crianças e coberta de comida! Era bem gostoso de ver! A moça com quem eu morava não jejuava e eu, várias vezes, quebrava o jejum sozinha (sim, eu jejuo!), quero dizer, quase sozinha.

Preparava minha comida, colocava em uma bandeja e comia na janela, junto à família das cabras nude-âmbar. Às vezes eu até participava do assunto, conforme eu ia tecendo um roteiro, como uma pessoa que atribui legendas a um filme mudo “De quantos meses você está?” “Seis” “Que maravilha! Benza Deus”… “E o Mohammed? Ligou?” “Ligoumasdeixapraláquemeupaitavindo”… “Do que vocês estavam falando, meninas?” “Nada, papai!” “hihihihi…” “hihihihihi…”.

Passada a refeição, desmontavam tudo e voltavam para o interior da casa, deixando-me a sós com as cabras. Observando o movimento delas, percebi que elas decidem coisas juntas… Todas se movimentam para um determinado ponto, fazem uma roda e confabulam sobre sei-lá-o-que! Comem juntas também e tem uns filhotinhos meio folgados que entram na bacia de comida. Comiam, as cabras e o filhote, dentro da bacia, mesmo.

As cabrinhas da laje à esquerda tinham um “cafofo” e, acredito, uma tratadora mulher, já que esta eu jamais vi tratando das cabras e elas (as cabras) entravam com muita freqüência no tal do cafofo… No princípio, imaginei que fosse para dar telefonemas mas, depois, acabei concluindo que, já que as cabras não comiam do lado de fora (por isso, inventei, também, que era uma tratadora mulher, que não queria se expor na laje, tratando de cabras, o que é possível no Egito), prefeririam comer a dar telefonemas.

Na laje da direita, todos os dias, subia um tratador. Um homem que havia, sempre, acabado de se levantar. O cabelo amassado, rente às costas, amassadas, uma camiseta desbeiçada enfiada às pressas, cós adentro de uma calça de louco. Calças de louco: São aquelas calças sem nenhuma sofisticação, nem zíper ou botões, sempre com um elástico ou cordão e o cara veste (aí é que está!) de um jeito que a costura da bunda não sincroniza com o rego. (Eu não sei como eles conseguem fazer isso!) e o cara parece que foi vestido por uma outra pessoa.

Ele se movimentava com uma vagareza que eu considerava irritante no princípio, depois, fui pegando amor nele. Lento, amassado, com aquela calça, o rego fora do lugar… Sei lá… Uma figura meio inocente, tratando as cabras com tanta delicadeza.

Ele punha a ração. Sentava-se numa velha cadeira rente ao muro. Observava. Depois ia levantando-se. Não, não é que ele se levantava, assim. Ele esticava uma perna, depois a outra, depois dobrava, botava o braço no muro, olhava para os lados, para o chão, para o próprio braço no muro, dizia “Vai, braço!” e o braço apoiava a mão “Vai, mão!” e, flasssssssss (esse é o barulho de um homem grande e lerdo se levantando de uma cadeira meio torta!) coçava alguma coisa e recomeçava.

O mesmo ritual era feito com a água: Serve, senta, observa, levanta… Enquanto cuidava das cabras, acariciava uma e outra, pegava os bebês no colo, dava uma ou outra chicoteada quando saía uma briga, às vezes, tirava leite. Depois descia, preparava um lanche e voltava para seu sofá. Até que alguém gritava seu nome e ele se levantasse, lentamente, para, quarenta minutos depois, estar na laje, com suas cabras.

Cabras brigam muito! Às vezes, não passa de uma discussão, uma outra interfere, chega uma cabrinha-criança, uma dessas coisas tolas que interrompem brigas tolas e, às vezes, chegam aos finalmentes e rolam umas chifradas. Daí, se separam, fofocam, fazem grupinhos, depois, vão voltando a interagir.

Tinha um deles, um bode preto, destoando das cabras-caramelo (bode? Tem bode no Egito? Deve haver um outro nome! Isso me dá um certo ciúmes! O bode não é só nosso?). Havia dias em que ele acordava de ovo virado e passava o dia todo berrando com todo mundo, dando cabeçadas e fazendo climão! Um dia, da minha janela, o vi causando na laje, comecei a ficar irritada com ele, balbuciei “bode feio, besta…” e ele virou-se, olhou na minha direção e deu um berro! Eu, instintivamente, me agachei, rente à parede e, lembrando que estava a uns oito andares acima dele, os imaginei rindo horrores da minha cara! “Pegamos mais um trouxa!”. Levantei-me rapidamente, mas todos disfarçaram e voltaram às suas atividades de cabra.

Teve uma outra que, certo dia, cansada de sua natureza quadrúpede, simplesmente, levantou-se. Do nada. E ficou ali em pé, por um tempo, pensando “Por que não?”. As demais não tiveram reação alguma. Talvez seja este, um hábito, uma excentricidade dela que as cabras concordaram em não alardear. Elegantes, as cabras!

Notei, ainda, que os animais maiores tinham as patas da frente atadas uma à outra… Cabras saltam! imagino que seja este o motivo, pelo qual têm as patas dianteiras atadas, não? Estando as cabras em cima da laje, pensa na merda que daria um “salto capricio” em plena Avenida (estas casas davam de frente à uma Avenida movimentadíssima do Cairo). A cabra cairia sobre alguém que, certamente, morreria, causando um constrangimento enorme a todos, inclusive ao morto, que teria que se explicar “Sabe o que é… eu tava andando na rua e… é que caiu uma cabra na minha cabeça…” e os anjos teriam que conter suas risadinhas angelicais.

As cabrinhas do telhado me fizeram uma companhia preciosa, especialmente, em momentos (que são muitos!) em que não desejo a companhia de nenhum humano ao meu alcance. E, além da amizade das cabrinhas, aquelas lajes cheias de vida, filhotes nascendo, cabras dando leite, homens calmos, mulheres invisíveis e famílias comendo juntas, davam-me a impressão de que as coisas estavam bem no Cairo. Da janela de onde, um dia, observei homens apressados e armados, via a vida berrando, o dia inteiro!